terça-feira, 30 de setembro de 2014

Convidado Miguel Gomes

Capítulo 1 - De Criança a Homem, numa chamada.

Era manhã de sábado.  Eu tinha aquela sensação boa de ser um dos 2 curtíssimos dias de fim-de-semana. Aquela sensação de descanso, de não fazer nada. Era o dia de ficar em casa, de pijama, a olhar para a televisão enquanto comia bolo de mármore, fofinho, fatia a fatia. Este era o típico e o melhor dos cenários.
Porém, nem tudo é como nós desejamos... Recebi uma chamada...
- "Tou" ?
E, de repente,  a manhã de sábado de suposto descanso tornara-se uma manhã pálida, com a televisão desligada, com o bolo de mármore escondido e só. Apenas eu, a mesa, o jornal, o telefone e uma inútil esperança de arranjar emprego. Como haveria eu de me sustentar? Eu que vivia sozinho, no meu apartamento T1, com uma cama barata e uma televisão com os canais nacionais apenas. Não iria de certo pedir dinheiro aos pais, aos amigos, nem pedir esmola na rua. Não, não queria chegar a esse ponto. Ao ponto de ser gozado e a minha reputação de garanhão iria por água a baixo.
Eram já 4 horas da tarde e já havia tentado dezenas se não centenas de oportunidades de emprego. Mas nada resultava. "Pedimos desculpa, mas se não tem o 10º ano, não poderá entrar para a nossa empresa".
E o tempo passava... Mas porquê esta estúpida ideia de sair da escola no fim do 9º ano? Porquê? Achava eu que ia ficar a trabalhar naquela treta de arrumador de caixas dos supermercados, ou lá como se chamava. Eu, como só trabalhava para sustentar a minha vida de solteiro, nem queria saber o que eu fazia, desde que o cheque com os números do salário mínimo estivesse nas minhas mãos ao fim do mês.
Enfim, era Domingo e agora tudo parecia importante. Eu, que nunca me importara se a porta estava quase a cair ou se as escadas de madeira antiquíssimas deveriam ser substituidas, estava agora importado com tudo. Importava-me com a canalização, as contas da água e da eletricidade. Estava com medo de as receber, mas principalmente de as pagar. Certamente que nem as do mês em que estava poderia pagar, porque todo o dinheiro que ganhava era dividido em noitadas, bebidas, até prostitutas e, eventualmente drogas, porque não era uma pessoa que se viciasse facilmente. Fumava o meu cigarrito 4 vezes ao dia, mandava pela varanda a baixo e divirta-me a vê-lo acertar na cabeça das pessoas que passeavam na rua, e depois fugir como se fosse uma criança.
As semanas passavam, e eu estava agora decidido a mudar. Talvez o despedimento tivesse sido um mal que veio por bem. Treinava agora malabarismos para ganhar uns trocos na rua. Quem sabe, se nos instantes encarnados dos semáforos não ganharia eu algo para comprar comida água e para entregar a roupa à lavandaria. Eu não queria que os meus pais soubessem, fingia estar tudo bem.  Nem lhes pedia um bocado de comida que fosse. Nem um resto de um almoço em família que se fazia de 15 em 15 dias, aos domingos. Domingos esses em que eu deixei de fingir não fumar, deixei de fingir ter um trabalho estável e uma vida igualmente estável, repleta de amigos e de quem me queria bem.Deixava de ser quem era. Porque agora eu tentava algo novo. Além de malabarismos, tentava ser um "Homem".
Foi então, num daqueles dias monótonos de malabarismos para cá, malabarismos para lá, que um homem me interrogou:
- Porque fazes isto? Porque começaste e continuas a fazer isto?


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Miguel Gomes

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