segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Rubra Flor

A espessura das palavras é algo extremamente importante. Tento construí-las como algo denso, quase impenetrável, que por si só terá a firmeza que necessita para se sustentar solitário. Retratar a beleza talvez seja o mais difícil. Não que se queira ignorar o fator de toda miséria material, porém é necessário transformar.
Todos carregam em si um tenebroso passado, uma quantidade imensa de chagas, que qualquer bofetão, pode afastar ao invés de acordar. Quando estava com Julia e sentia a respiração frágil dela, minha mão hesitava em tocar aquele corpo, só conseguia pensar em proteção.
Quando os olhos abriram, pude notar um grande conforto. Ela estava na nuvem do mais velho ancião. Qualquer sopro poderia ser trágico. Deitei a mão levemente em suas curvas e os olhos respondiam trocando pequenos afagos com os meus. Faz dois anos que isso aconteceu. Agora ela está ali, deitada, há uns dez metros de distância, no campo amarelo dourado pelo sol, cujas plantas eu não sei o nome.
Queria correr em sua direção, mas a fadiga é minha âncora e logo teremos que voltar aos fatos cotidianos. Sempre acreditei na força da transformação, porém em certos momentos comecei a duvidar dos métodos. Somos todos irmãos. Aprendi com ela a tomar cuidado com as palavras e hoje sei que um abraço amoroso é mais certeiro que meus livros vermelhos. Espero que não haja qualquer interpretação rancorosa em tudo isso.
Eis a poética da coisa. Caminhávamos eu e ela, lado a lado na grande marcha. Aqui, um momento de pulsão em minha vida. Creio que não era diferente com Julia. Num instante passou o braço em minha cintura e sentimos na pele o entendimento da palavra companheirismo. Marchávamos em pró do acesso a metrópole. Queríamos realmente ter acesso a aquilo? Almejamos o acesso ao sonho.
Depois no boteco, os companheiros bradavam os seus feitos. Eram engraçados aqueles momentos. Na base da cachaça, todos eram pra mim gigantescos heróis. Eu e Julia fazíamos parte daquele panteão. No auge das horas, os assuntos eram inacabados, não concluíamos nada, mas sabíamos que naquela unidade, tínhamos certeza de tudo.
Depois bamboleamos os dois de volta pra casa em cima de nossas magras pernas. No caminho, um gatinho de pelo preto e branco apareceu, era o nosso novo companheiro. Com ele atravessamos a cidade e quando passava sua língua lixa em nossos braços, tremíamos em risos ofegantes.
Julia é pra mim a flor vermelha da militância poética. Em seu centro se esconde um dourado vibrante, que se expande quando enche os olhos d’agua. Deitar ao seu lado era magnifico, porém quando caminhávamos juntos, eram esses os momentos que me constituíam força e vigor.
Certa manhã, deitados na cama, ela acordou dando risadas escandalosas.
- Que foi? – perguntei.
- Sonhei que grandes tomates usavam coroas.
- Nossa!
- Você acha estranho?
- Algo difícil né.
- Por quê?
- Não sei, nunca vi algo do tipo.
- Só acredita no que vê?
Ela estava nua e o seu corpo vermelho devido as risadas. De repente taquei-lhe um beijo e acreditei que aqueles tomates eram sujeitos bacanas. Gostávamos de tomar café da manhã ainda molhados pela água do banho. Toalhas soavam um tanto chatas e secar no decorrer do dia parecia mais divertido.
Um tanto absurdo. As reuniões coletivas eram marcadas por longos discursos e nem todos germinavam seus frutos. Era nos bastidores onde tudo se ajeitava. Tenho saudade deles. Sei que cada um tem seu tempo e com alguns, eu e Julia, deitávamos, brincávamos e amávamos. Sei que cada um tem seu tempo e espero também que compreendam meus erros e lembrem dos largos sorrisos que abríamos uns aos outros.
Hoje, separados nas trincheiras, sigo com meus escritos. Às vezes, penso que estou perdendo as forças, mas uma breve respiração me faz olhar para as pétalas que voam e reencontro meu caminho.
O mais compreensível e sagaz de todos, tinha uma barba muito cerrada e uma voz doce. Foi ele que me apresentou Julia. Ela usava um vestido branco que no centro possuía um grande girassol. Ele uma bata multicolorida e uma bermudinha de jogador de bola.
- Essa é a Julia.
Quando fui cumprimenta-la, me olhou de um jeito tão vivo penetrando facilmente na minha alma e de cara descobriu meia dúzia de defeitos que eu tinha. Ali me entreguei, a todo universo dela, de partidos, de eloquentes discursos, e de decepções intermitentes, que no fim, nunca superavam o carinho da camaradagem.
Um dia, tive o seguinte sonho:
Caminhava na rua sozinho, tudo em volta era cinza, somente meu corpo cintilava um branco estranho. Quando cruzei a primeira esquina, dei de cara com uma grande passeata de corpos cinzas mecânicos. Magneticamente meu corpo fora atraído por aquele fluxo. Todos olhavam para mim devido a cor que possuía, mas seguiam seu caminho, eu seguia com eles.
O destino final era uma enorme praça. Era perceptível que no centro da praça alguma coisa acontecia. Corri para ver o que era. Tudo ali possuía muitas cores. Todos os meus companheiros ali estavam. No centro estava Julia. Eles pareciam delicadas abelhas a procura de mel e se acariciavam. Julia era a grande flor. Eles explodiam em cor. Não era a cor original de seus corpos, vagueavam por infinitas aquarelas. Todos me olhavam convidativos.
- Você não vem? – perguntou Julia.
Percebi que estava descalço e comecei a caminhar em sua direção. Meus pés entraram numa morna lagoa. Rapidamente a agua já batia em meu pescoço. Senti o gosto das cores. Eu era um deles.

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