terça-feira, 6 de março de 2007

Estória


Arlindo Orlando nascera em fins dos anos 60. Caboclinho típico, miscigenado até o último fio-de-cabelo. Viera de uma família complicada. Parte dos estigmas que carregou se devia a isso... Era neto de assaltante de Bancos famoso pela inteligência. Vovô Alfredo fora respeitado pela bandidagem das antigas, sobretudo , quando da última prisão, acabara líder dos presos políticos , lá na Ilha Grande.
Seu pai – Cesinha da Milonga- ainda era ritmista de Escola de Samba. Vivera sempre assim... Um representante sazonal da Cultura Nacional.
Quando o Carnaval acabava, restavam-lhe , apenas, os turistas pingando alguns trocados em seus “pockets Shows” nos bares do litoral da Zona Sul Carioca. Viúvo, era daí que tirava o sustento dele e do moleque.
Ele mesmo -Arlindo- iniciou sua vida produtiva, acompanhando o Jogo-do-Bicho na quadra da Escola de Samba, e, desde moleque, já fazia pequenos serviços às bancas de rateio. Logo se tornou apontador chefe,com meros 16 anos, pois , suas habilidades com os números fizeram dele uma lenda.
Um dos Grandes Beneméritos da Escola de Samba - Dr Da Silva– era, oficialmente , empresário famoso da área de finanças .Um sujeito alto ,forte e branquelo ; conquistador barato daquele lugar , e que , praticamente ,adotou-o dando-lhe estudo. Arlindo não seria mais um moleque perdido pelas esquinas. Ao menos era nisso em que ele acreditava...Afinal, havia sobrevivido à própria sina, como diziam muitos de seus parentes mais próximos.
Todas essas lembranças lhe vieram à mente , em meio à festa de final-de-ano da Companhia. Seria o momento em que todo o seu trabalho teria, enfim , reconhecimento. Ele sabia – intimamente- que grande parte desta década e meia, fora uma provação diária para ele. Ao abdicar de suas mais profundas crenças, tornara-se apenas mais um número no setor de Recursos Humanos, com o diferencial das suas incríveis habilidades, que , em meio às falsidades do mercado, faziam suas interferências e soluções serem alvo do respeito de todos. E, por que não dizer, da inveja também.
Por muitas vezes, Arlindo sorrira fraterno , para um pobre coitado que, no dia seguinte, seria mais um falido, engolido pelo rolo compressor da Companhia desalmada, da qual ele era mais um número , muito embora fosse o melhor deles. Para ele, se a guerra era inevitável,melhor seria fuzilar sorrindo. Como, aliás , Judas havia feito um dia...
Mas ele tinha que esquecer destas estórias, pois, agora era momento de festa! E ocorreria a nomeação do novo Superintendente, mantida trancada à sete-chaves, pelo respeitado Dr: Da Silva.
Apesar das rodas de aposta jurarem que ele, Arlindo, era o favorito ao cargo, ele bem conhecia as excentricidades do patrão. Mesmo que ,nos negócios, o pragmatismo fosse a tônica, ele não seria ingênuo de desconsiderar as esquisitices de um homem à beira da morte,vítima de esclerose múltipla, embora, ainda, debochadamente, consciente de seu poder; hemi entrevado numa cadeira de rodas moderníssima, fabricada (diziam...) pelas equipes da NASA.
Da Silva sempre fazia que todos engolissem suas vontades. . . Acostumara-se a impôr suas vontades. Nada importava. Só a sua vontade.
E mesmo nessa festa... Não perderia a chance de subjulgar tudo e todos . O que dizer de uma caipirinha – intragável- feita de Tequila, Mexericas e adoçante...? Aliás, a única bebida servida, ao longo do Cocktail. Adorava aquela mistura antagônica...
Nem água, nem refrigerantes... Nada além. Apenas a beberagem, apropriadamente apelidada , nos bastidores, de “ AMBEV – Aceite ,Misture,Beba ,Enjoe e Vomite”. Sim... Na entrada, modeletes em fim de carreira , ofertavam brindes corporativos, onde cartelas de Engov , eram o destaque. Parte do show particular de Da Silva iría começar. Parte , apenas...
Tudo corria como em toda festa, até que os ritmistas estranhamente pararam de tocar o Samba da Escola campeã. Uma correria se seguiu, para longe de um negro alto , que , com o laço do surdo atravessado no peito, trazia uma pistola prateada na mão. Sem dizer uma só palavra, o homem encosta o cano na têmpora de Da silva e atira. Um só tiro. E , aquele homem cuja morte era mera questão de pouco tempo, cai curvado , de olhos esbugalhados , e sorriso aliviado, na direção de Arlindo como se quisesse falar-lhe algo .
A frase do assassino ainda ecoava nos ouvidos de todos. Ele dissera à vítima que 33 anos foram o bastante .
Arlindo reconheceu o assassino pela voz. Era seu pai. O mesmo artista que driblava a fome com Arte. O mesmo homem, outrora sorridente, que naquele momento , ele não reconhecia mais. O mesmo homem, agora, deformado e crivado de balas,tingindo o surdo de vermelho.Arrastado para fora, como um saco de lixo...Inerte.
Um dos assistentes pega o envelope, caído ao lado do corpo de Da Silva, que, já era retirado do local. Muitos curvaram-se em reverência, aproveitando para , catarem nos bolsos suas apostas feitas. Muitos
apostadores haviam acertado o nome escolhido, e , alguns deles já bêbados, esfregavam as mãos. A banca-de-aposta quebrou nessa noite. A Festa – claro – acabou. Mas não se ouviu choro algum... Tampouco lamentos. Nem, dos Bookmakers que perderam uma grana preta. Parecia que aquilo já era esperado. Há muito tempo.
Os jornais noticiaram tudo no dia seguinte. Mas, em poucos dias, outra tragédia tomou conta das primeiras páginas. Era a vida. E a vida era assim mesmo.
Arlindo chegou onde sempre desejou, pelas mãos de um destino excêntrico. Coroado com sangue misturado de dois homens. Homens tão distantes entre si, e unidos num mesmo destino com hora marcada. A hora em que um deles decidiu que era a hora.
“(...)O que não tem jeito , ajeitado está...” dizia seu velho avô no passado não tão distante assim. Mas, Arlindo sentia uma verdadeira antítese de emoções . Uma mistura irracional de prazer e tristeza.
A vacância do cargo fez dele Presidente Temporário.E na verdade, por falta de herdeiros , sabia-se vitalício. Um cargo onde ele nunca imaginara estar. Um cargo ,onde as reverências dos colegas, sempre eram feitas com a respiração presa, com olhares baixos . Os tapinhas nas costas , pelos corredores, pareciam punhaladas que não sangravam.
Mas, a Companhia sem alma tinha um novo patrão. Dr: Arlindo. De corpo e alma. Um caboclinho orfão . De pais e mãe.
Saiu da sala que, agora, tinha seu nome estampado na porta,em letras garrafais e douradas. Pegou o elevador e subiu para a cobertura, que , lá do alto, vislumbrava toda a cidade adormecida. Lá de cima do Edifício Sede , olhou para o céu, e procurou sua mãe por entre as estrelas . Ela chamava-se Dalva. Como a Estrela... Ele sempre fazia isso, há 33 anos, desde que ela fora assassinada misteriosamente, em um apartamento bem em frente a quadra da Escola de Samba. Diziam ter sido um assalto.Ou um engano. Nunca se soube o que , de fato, acontecera. Diziam que o caso fora abafado. A autoria , desconhecida.
A verdade, nunca apareceu . Só comentários no passado, um aqui, outro ali, que nunca lhe pareceram conexos. E , alguns tapas nas costas, pesarosos e mal contendo um riso disfarçado.
Olhou novamente a cidade adormecida. As nuvens haviam escondido as estrelas . Era seu aniversário . Lembrou da primeira bicicleta que Dalva lhe dera , ganha numa rifa da Escola de Samba .E finalmente entendeu tudo.

10 comentários:

MPadilha disse...

Confesso que quando comecei me veio à lembrança a música "Volte Arlindo Orlando, volte para o seio de sua amada..." e por conta disso pensei ser um texto de humor.Não.Como era de se esperar, do Edu, inteligentíssimo, teve sua pitada, mas moderno, crítico, recheado de minúcias que me fizeram ler atentamente do começo ao fim.Um conto ao estilo do carioca que é.Fenomenal!
Eita que esse Bar tá muito bom!
Não decepcionou Edu, superou minhas expectativas.O que era para ser paixão foi apaixonante.Um beijo especial só para ti.

Giovani Iemini disse...

Quer dizer que não houve coincidência, apenas o destino sendo manobrado pelos homens?!
Bacana.

Larissa Marques - LM@rq disse...

Alta qualidade!
Beijo grande!

Klotz disse...

Ansioso, esperei até a meia noite para postar meu texto. Você nem esperou seu dia. Uma hora e meia antes das doze badaladas você postou seu texto. Precisamente às 10h28. Ótima forma para começar a contar mais um misterioso crime ocorrido na cidade maravilhosa. Todos os elementos presentes. Cenários de Ilha Grande, quadra de escola de samba, uma festa numa grande empresa da área de finanças. Personagens marcantes em cadeira de roda e bandido com árvore genealógica. Referências provocativas com Arlindo Orlando, Estrela Dalva, Judas e Ambev.
Como convém a um bom conto policial, deixou para o final uma surpresa.
Agora só nos resta esperar mais trinta dias para ler sua nova postagem.

Lameque disse...

Como Carioca identifiquei-me com o universo criado pelo Eduardo. Está tudo lá: bicheiros, sambistas artistas de shows de porta de restaurante etc. Ótima piada com a maior Cervejaria do planeta, rs. Personagens muito bem delineados e a preocupação do autor em nos contar uma história sem maneirismos estilísticos.

Beleza Pura! Belo Conto!

Anônimo disse...

Duuuuu!!!!! vc juntou tudo, todas os temas e ficou MUITO BOM. Agora o vovô bandido foi criação sua?
Nunca tinha te lido nos policiais, e como todos fiquei surpresa. Final trágico e tudo mais.PARABENS!!!!!!!!!!!!!!!!

ofilhodoblues disse...

É isso ai Edu!
estreiou muito bem!
A brincadeira da AMBEV realmente ficou ótima
eaiaeiuehe

flew!
André Espínola

Anônimo disse...

Eu sei bem como é o Rio.Você falou em prosa sobre o Rio, falta agora em verso.Grande abraço!

Deveras disse...

Grande Perrone,

Como disseram acima, arrebentou com todos os temas, ficou ducaraio! (e agora posso vislumbrar melhor o texto, tendo conferido "in loco" alguns dos cenários, hehehe...)

Bração !

Cristiano Neto "Deveras"

Véïö Chïñä‡ disse...

Taí, meu amigo Perrone não é só um poeta. É um escritor e dos bons.
E escreve bem e sabe montar um enredo. Muito bom.