terça-feira, 4 de setembro de 2007

LITURGIA

“Dor, nossa, minha dor,
Esta dor de vagabundo...”

C.Bukowski


Hoje eu acordei com a corda toda. Acho que consigo escrever uns dez contos, ininterruptamente. Só assim para poder colocar o serviço em dia. Bolei uma estória genial de um cara que quer mas não consegue escrever por causa do teclado estragado que não solta a tecla t. um escritor sem a letra t, não é legal ? Pensei até no título: Um escritor sem “T”. Em caixa alta dá uma dualidade boa. Todos pensam que é sobre sacanagem e quando forem ver, tchan-ram! Era só o teclado. Achei do caralho.
Mal eu começo a escrever, e lá vem ela. Neuza, a faxineira. Esqueci que é hoje é Sábado, o dia em que ela vira meu apê pelo avesso. Tira tudo do lugar e deixa arrumado, totalmente fora da minha lógica bagunçada da semana inteira. Nem bem havia escrito o primeiro parágrafo e sinto uma respiração quase ofegante atrás de mim.
- O senhor escreve tanta coisa bonita. Aquelas historinhas pequenas que umas linhas sempre parecem com as outras. Queria até sabê lê direito prá puder intendê tudim...
- Obrigado. Aquilo se chama poesia, mas é somente para passar o tempo. Cada um entende do jeito que quiser. Meu lance agora são contos.
- Faz é hora que tá aí na frente do computadô...
- É que amanheci inspirado.
- O senhor amanheceu é com a gota... – Neuza é do Pará, mas tem a maneira delicada de falar dos baianos, a vontade de trabalhar dos paulistas e o bom humor dos cearenses. Deve ser pela “proximidade” dos estados.
- Neuza...
- Sim?
- Pára de me chamar de senhor. Você lavou aquela minha camisa azul?
- Não... Por falar nisso, o desinfetante acabou... Como o senhor – levanto uma das sobrancelhas, ela sorri – digo, como você gastou os dois litros que estavam semana passada? Bebeu achando que era batida de côco?
- Um Zé mané qualquer que estava aqui na festinha de Quinta, usou o banheiro e depois derramou quase tudo na privada.
- Então não foi o côco e sim um cocô. Deve ter sido uma cagada e tanto, hein?
- Realmente... Empesteou o andar inteiro.
- Ah, é por isso que a dona Maristela, aquela velha que têm cara de borracha derretendo, sempre olha para cá com cara de bosta...
- É... Ou isso ou ela tá afim de mim.
Ela sai para a cozinha e eu me volto para o teclado. Tento digitar algo mas o telefone toca. Atendo e vejo que agora tenho que terminar isto antes da uma da tarde, que é a hora que o Marcelo vai passar por aqui para irmos a um churrasco. Tudo por conta, legal. Encho a cara e economizou uma grana. Neuza termina na cozinha (havia somente alguns pratos sujos, além de uns copos com resto de cerveja, o fogão estava limpo desde a semana passada; foi a semana da pizza), e parte para arrumar meu quarto. Abre a janela e vêm correndo:
- Vixe Maria!!! Têm uma menina pelada na sua cama! Cê não têm vergonha?
- Em primeiro lugar, a Silvinha fez dezenove semana passada, tecnicamente ela não é mais uma menina. Não de todo. Em segundo quem deveria estar com vergonha era ela, por estar pelada. Além do mais, foi ela quem quis dormir assim. Como eu diria não?
- Mas ela é muito nova para você, Juliano!
- Neuza, eu só tenho 32! E não aconteceu nada. Ela é filha de uma amiga minha, brigou com a mãe e fugiu de casa. Como não tinha para onde ir, veio para cá.
- E a mãe não tá preocupada com a garota não?
- Ela ligou ainda ontem. Depois que soube que a filha estava aqui, ficou tranqüila. Disse-me que se toda fuga dela acabasse aqui em casa, ia dizer para ela fugir mais vezes.
- E agora ela vai morar aqui?
- Não. Quando a grana acabar a Beth garantiu que ela volta para casa.
- Essa Beth não é aquela que você namorou uns tempos atrás?
- É sim.
- E como ela pode estar tranqüila com vocês dois aqui junto, assim... Sabe como é... Ela dormiu na casa de um homem solteiro... Galinha... Menininha nova... – ela fazia trejeitos de quem se beijava.
- Menininha lésbica...
- Como? – Neuza ficou estática.
- Ela é homossexual, entende? Gosta é de mulher. Nem se eu tentasse (e para falar a verdade eu tentei um pouco, depois da segunda garrafa de vinho), acho que ela toparia. Infelizmente. A propósito, eu dormi no sofá, adiantando a resposta.
- Ela é tão novinha. E bonita. Como será que está a mãe agora que descobriu?
- Neuza, a Beth já sabe disso desde que a Silvia tinha dezesseis. Até a namorada da garota dorme na casa dela ás vezes. Elas brigaram por outra coisa. Nem sei.
- Coisa louca, né? Lá no Pará num tem disso não! Eu garanto!
- Acho melhor você garantir agora o meu banheiro e não ficar aí, pensando na vida sexual dos outros.
- Tá, tá, tá... Só queria conversar um pouco, arre.
Novamente de volta ao computador. Caceta. Agora eu perdi o fio da meada. Tinha um nome bem legal que tinha arranjado para o técnico que iria consertar o teclado, mas qual era? Miserinha? Mixuruca? Ah! Mixaria! Era o apelido de um mecânico não sei de onde. Preparo as mãos para cair sobre o teclado, quando sinto uma dor conhecida. Tendinite velha de guerra. Melhor ir à sacada, fazer uns exercícios e aproveitar e fumar um cigarro. Esclarece as idéias. Fui à cozinha apanhei uma long-neck (para já ir aquecendo o fígado), voltei para a sacada me atirei no puff que ficava no canto. Acendi um e Silvia apareceu. Vestia uma camisa minha. E mais nada. Ai, meu São José dos Caras na Tanga! Que corpo era aquele? Que pele era aquela? Que olhos eram aqueles! Que desperdício!!!
- Você tem mais um aí? – e apontava o cigarro. Tirei um do bolso – é o Bom Dia Brasil, entende?
- Não prefere escovar os dentes antes?
- É... Bem que eu queria. Mas têm uma gostosinha no banheiro. Aí, garanhão, tá mandando ver, hein?
- Neuza, minha faxineira.
- T.E.D.
- Hã?
- Terror das Empregadas Domésticas.
- Sai fora.
- Ela é casada?
- Separada. Mãe de dois filhos.
- Melhor ainda. Você os conhece? – deu uma tragada soprando a fumaça para o alto.
- Só o mais velho. Ela o trouxe uma vez. Fez tanta bagunça que me deu vontade de jogá-lo pela janela.
- Por isso ela não trás ele mais?
- Não. É por que ela quase o jogou pela janela.
- Mas diga aí, já andou na pequena área?
- Não dá para misturar este tipo de coisa. Ela vem, trabalha e pronto. É uma garota legal.
- Não acredito que justo você não iria encarar traçar uma bundinha daquelas.
- Traço ela e você. É só querer.
- Seu cafajeste...
- Canalha, por favor. Comer eu como, só que não rola. Se a mulher não tá afim, nem tento. Economizo o fora que posso tomar outra hora. E aí o que me diz?
- Você tava me jogando charme ontem à noite, safadão!
- Talvez. Só pouquinho. - começo a cantarolar - Não deu segurar...
- Explode coração – ela termina a frase e caímos na risada – quem sabe um dia...
Aquilo me deixou mais atacado ainda. Mas só a vi com esses olhos depois que deixei a mãe dela, antes nunca. Se têm uma coisa que eu e a Silvinha sempre tivemos foi uma amizade super legal. Ela era bem nova quando comecei a namorar a Beth, adolescente em crise, mas comigo sempre foi de boa. A gente assistia a muito filme junto, acompanhávamos os jogos na tevê, eu sempre Flamengo, ela Corínthians, a Beth detestando jogo, nós gritando gol pela casa inteira, fazendo comidas extravagantes (que nem sempre eram degustáveis) e tomando alguns porres em alguns finais de semana. Isso, nosso companheirismo, não as cachaças, abalaram minha relação com a mãe (que era quem bebia, não a garota), que achava que eu estava dando em cima da menina.
Talvez ela tivesse um pouco de razão, mas como ela poderia saber que eu não via outra mulher além dela e tinha um sentimento muito mais de irmão mais velho para com a Silvia, do qualquer conotação amorosa, no sentido tira e põe (ou como ela podia desconfiar que a filha estivesse tendo seu primeiro caso com a filha da vizinha? Isso eu sabia. A primeira pessoa que descobriu isso fui eu. Dei uns conselhos para Silvia, de que contasse tudo para a mãe e tocasse o F... de vez. Foi o que ela fez, alguns anos depois). Outro fato chato foi que a Nani, irmã da Beth, veio de Berlim só para dar para mim (e ainda rimou, pode?). Como eu poderia dizer não a uma mulher que viajou mais de cinco mil quilômetros só para dormir comigo? Foi a gota d’água. Ficamos sem nos falar um bom tempo, mas como tínhamos amigos em comum, sempre nos esbarrávamos em um lugar ou outro, daí que voltamos a ser bons amigos de uns três anos para cá. Mais ou menos na época que a Beth descobriu tudo. Silvia passou uma semana no meu apartamento e eu passei duas consolando a mãe. Sexualmente falando, claro.
Falamos um pouco do passado, até que me lembrei que o computador estava ligado, gastando energia e que já eram quinze para uma da tarde. Melhor tomar uma ducha e me aprontar para sair. Passei as últimas recomendações para a Neuza, convidei a Silvia para ir, e como ele disse não, troquei de roupa e me mandei. O Marcelo já estava me esperando na portaria. E garantiu que na festa havia duas gatas só esperando a gente. Tudo esquematizado.
- Pode confiar. Cê não vai se arrepender!
Se arrependimento matasse, eu não tinha nem nascido. Acho que meu amigo devia estar trocando de santo padroeiro. Só não conseguia era entender se ele era devoto de São Jorge, matador de dragões ou de São Judas Tadeu, o cara das causas impossíveis. Somente um dos dois poderia dar um jeito naquelas, como eu poderia dizer sem magoá-las? Aquelas Orcs. Tá, eu exagerei um pouco. Eram as duas cavaleiras perdidas do Apocalipse, a Morte e a Fome. Talvez a primeira fosse a Guerra, por que me dava uma vontade danada de encher ela de bolacha toda vez que abria a boca. A outra, além de parecer uma fugitiva do país das anoréxicas, me lembrava também a Peste. Como ela tinha a língua envenenada, meu! Falava mal de todo mundo que conhecia (acho que a partir de amanhã, vou fazer parte do seu cardápio), e o Marceleza lá... Se fartando da estriquinina que escorria dos lábios dela. Uhhh, vai morrer! Uhhh, vai morrer!
Nossas companheiras, aliadas ao terrível som de música sertaneja que entrava pelos meus ouvidos, estavam estragando completamente o ambiente. Mesmo que o clube fosse duca, toda beleza dos amplos jardins perfeitamente aparados, cercados por um bosque cheio de frondosas árvores, atrás das quais estava um amplo complexo de piscinas, todas muito azuis sob o sol da tarde e milimetricamente alinhadas, além da farta comida e bebida estupidamente gelada, tudo, mas tudo mesmo ficava em segundo plano.
Eu só conseguia pensar na Silvia vestindo minha camisa branca, sem nadica de nada por baixo, deitada na minha sala assistindo a um dos muitos dvd’s que eu possuía. Talvez se eu pegasse o filme certo, o vinho exato, dizer as coisas mais convincentes e inteligentes que pudesse, mantendo o nível certo de charme na dose correta de pilantragem disfarçada, quem sabe não dava para dar uma? Pelo menos uns selinhos, vai. Fiquei matutando aquilo a tarde inteira e no começo da noite, na primeira oportunidade de me livrar dos Canhões de Navaronne, deixando-as aos cuidados do ébrio Marcelo, peguei um táxi e me mandei. Direto para o Quinta do Macaco Molhado e se chegar em menos de meia hora, ganha gorjeta! O taxista fez milagre. Só não viu foi a multiplicação de notas do jeito que ele estava esperando. Tá pensando que meu dinheiro é capim? Eu neguei três vezes que tivesse oferecido prêmio. Ele me achou um Judas.
Entrei no elevador saltitando. Se o porteiro me ver agora, vai achar que estou possesso. Tentei abrir a porta antes mesmo de chegar ao andar correto (tinha que ser o penúltimo, tinha!) e voei para meu apertamento. A chave não queria parar de pular na minha mão até que a porta gentilmente parou de correr e consegui abri-la. Quase morri.
No meio da sala, angelicamente nua e dormindo estava Silvia. Havia uma garrafa de vinho (Valpolicella Bolla) jogada no canto, alguns dvd’s espalhados, minha camisa jogada sobre o sofá, que cena... Meu queixo encostava no sapato. Ao lado dela estava uma mulher, também nua e acordando sonolenta por causa do barulhão que fiz enquanto tentava abrir a porta:
- Seu Juliano, perdeu uma festa e tanto!!!
- Neuza??? – fiquei estático – Você não disse que no Pará ninguém fazia isso?
Ela se levantou, pegou uma toalha e passou rumo ao banheiro:
- Eu não estou no Pará, lembra? – Silvia também acordara e me olhava rindo:
- É como dizem vocês homens: Se bobear a gente pimba!

Fiquei ali parado com cara de babaca que tinha visto caxinguelê.

8 comentários:

Anderson H. disse...

muito bom. o andamento da história está fantástico.

Marco Ermida Martire disse...

Falar o quê? O Deveras mantém a produção desse bar no nível elevado! Adoro histórias de pegações cotidianas. Ritmo empolgante. Tintin!

Anônimo disse...

Cara, muito maneiro. Delicioso de ler. Sabia que essa Neuza do Pará iria aprontar alguma. hauahuahau

Carlos Cruz disse...

Genial, Ovelha.

Conduzido com maestria, prende o leitor, rumo ao final surpreendente.

Muito bom.

Lameque disse...

Cara, o conto tem cara de Bukowski e temperero de Deveras, proxímo ao genial.

Sinceros parabéns

Anônimo disse...

Estou com vontade de soltar um palavrão, no bom sentido.
Achei excelente.
Fazia tempo que não dava gargalhadas com um texto.

Deveras disse...

Valeus gente...

Gradicido.

fiquemnapaz

Anônimo disse...

o meu preferido daqui. o mais interessante. parabéns!