– Cobogó? Que diabos é isso?
Eu não sou de prestar atenção na conversa alheia. Entretanto, às vezes é impossível não ouvir.
Eu estava voltando para Brasília sentado na poltrona do meio. Logo atrás de mim, naquele vôo lotado, estava uma mulher vistosa dos seus trinta anos. Entendi que ela não conhecia Brasília e recebeu convite para trabalhar na capital. Ela queria saber como as pessoas moram em Brasília e encontrou na poltrona vizinha um candango falante que deve ter sido guia turístico. Ambos falavam alto, o que tirou a atenção da minha leitura.
A primeira frase que ouvi foi dele.
– Os ricos, moram no lago. Os bem ricos, numa ponta de picolé.
– Como é? – Indagou a mulher formando rima.
– As pessoas mais endinheiradas moram próximas do lago e os terrenos enormes que ficam nas margens são chamados pontas de picolé. Somente esses têm o privilégio do acesso à água. Acredito que o melhor lugar para morar é no Plano.
– As margens do lago são muito íngremes?
– Não. Por que?
– Você disse que preferia morar em lugar plano.
O vizinho, imagino, deu um sorriso, explicou que se referia ao Plano Piloto e falou das asas Sul e Norte arrematando que as melhores quadras eram as cem e as trezentos.
Naturalmente ela deve ter feito cara de dúvida, pois ele tornou a explicar que as quadras cem e trezentos ficavam a oeste do Eixão.
Continuei sentado no meu lugar, preso ao cinto de segurança, mas com uma enorme vontade de olhar para trás para ver a cara de interrogação da mulher.
– Eixão?
O avião deu uma chacoalhada de modo que perdi aquela explicação. Ouvi outra, já pela metade.
– ... os melhores apartamentos são os mais antigos, são amplos e vazados.
– E o que é um apartamento vazado?
O candango chegou a ser irritante com sua longa e apaixonada explicação.
– Os prédios, conhecidos por blocos ficam deitados. São compridos em vez de altos. O que faz com que haja maior número de apartamentos no mesmo andar e provoca menos áreas externas, logo há muitos apartamentos com apenas uma frente. Os antigos têm frente e fundo do lado oposto. São os vazados. Todos os apês antigos têm cobogó.
– Cobogó? Que diabos é isso?
Adoro essa palavra formada pela primeira sílaba de três engenheiros que criaram uma parede de tijolos decorativos que permite ventilação e entrada de luz natural. De modo que só ouvi o final da frase do vizinho falante.
– ... além do que, são impressões digitais da cidade.
Daí, ela perguntou qual era o prato típico da cidade.
E ele foi muito criativo na resposta.
– Não há nenhum prato típico por que os moradores têm origens em todas as regiões brasileiras. Na cidade encontramos todos os temperos. Não há prato nem forma comum de preparar alguma iguaria. È usual a reunião das pessoas em torno de uma churrasqueira. Cada um preparando a carne, ou peixe, por que não, a seu modo. Quase todas as casas do Lago têm churrasqueiras. Quase todos os clubes têm churrasqueiras e também há muitas espalhadas nos parques públicos. O churrasco agrega as pessoas. O brasiliense aprendeu que para sobreviver ali deve unir-se com os outros, respeitando e ultrapassando barreiras regionais.
– Uau! Falou bonito! Só ouço as pessoas falarem mal de Brasília, que é onde todos os corruptos se reúnem para roubar o resto dos brasileiros...
Nesse momento a forasteira acertou o fígado de todos os brasilienses com um poderoso golpe direto.
– Pois é, esse lamentável rótulo pertencia ao Rio, enquanto capital. Mineiros pão-duros, baianos preguiçosos, paulistas trabalhadores. Rótulos servem apenas para garrafas. A corrupção está espalhada por todos os cantos do nosso país. Não se salva nenhum enquanto permanecer a impunidade. A diferença é que em Brasília as somas são maiores e a mídia está mais atenta.
A mulher percebeu que cometeu uma gafe ao falar mal de Brasília a um brasiliense. E procurou mudar de assunto:
– Faz muito tempo que você mora em Brasília?
Aliviado, o candango respondeu:
– Agora você já está falando como uma brasiliense legítima...
– Não entendi...
– Quando duas pessoas se conhecem, a primeira pergunta é: há quanto tempo mora na cidade? e a segunda, invariavelmente, é: de onde você veio? Agora, com o passar do tempo e o nascimento de uma geração de nascidos na capital, a coisa mudou um pouco. De qualquer forma, as perguntas sempre são bem-vindas para o início de uma conversa.
– E, há quanto tempo, afinal, você mora na cidade?
– Fui para lá no início da década de 70. No tempo em que a lenda dizia que quem se mudava para Brasília passava pelo estágio dos três dês. Deslumbramento, decepção e desespero. Deslumbramento com as largas avenidas, arquitetura monumental e proximidade com o poder. Decepção ao perceber que morar próximo ao poder não os transforma em nobres. Desespero por não se adaptar à cidade e querer ir embora.
– Era tão ruim assim?
– É uma cidade de gente guerreira. Os perdedores sempre reclamam. O tempo incorporou outro dê. O dê da demência.
– Como assim? Não entendi...
– É quando as pessoas se acostumam, se entrosam e passam a amar Brasília.
– Interessante essa lenda...
– Particularmente, adotei ainda os dês da devoção e defesa da cidade que tão bem me acolheu.
Nesse momento a conversa dos dois foi interrompida pelo forte barulho do retrocesso das turbinas no pouso do avião.
O avião taxiou e estacionou.
Abri a porta do compartimento acima da cabeça, peguei minha sacola e olhei para os que me proporcionaram um vôo mais agradável.Ainda pensei em falar ao conterrâneo que as sílabas de cobogó foram formadas a partir dos nomes de Coimbra, Boekmann e Góis, mas apenas me despedi com um gesto de cabeça.
Eu não sou de prestar atenção na conversa alheia. Entretanto, às vezes é impossível não ouvir.
Eu estava voltando para Brasília sentado na poltrona do meio. Logo atrás de mim, naquele vôo lotado, estava uma mulher vistosa dos seus trinta anos. Entendi que ela não conhecia Brasília e recebeu convite para trabalhar na capital. Ela queria saber como as pessoas moram em Brasília e encontrou na poltrona vizinha um candango falante que deve ter sido guia turístico. Ambos falavam alto, o que tirou a atenção da minha leitura.
A primeira frase que ouvi foi dele.
– Os ricos, moram no lago. Os bem ricos, numa ponta de picolé.
– Como é? – Indagou a mulher formando rima.
– As pessoas mais endinheiradas moram próximas do lago e os terrenos enormes que ficam nas margens são chamados pontas de picolé. Somente esses têm o privilégio do acesso à água. Acredito que o melhor lugar para morar é no Plano.
– As margens do lago são muito íngremes?
– Não. Por que?
– Você disse que preferia morar em lugar plano.
O vizinho, imagino, deu um sorriso, explicou que se referia ao Plano Piloto e falou das asas Sul e Norte arrematando que as melhores quadras eram as cem e as trezentos.
Naturalmente ela deve ter feito cara de dúvida, pois ele tornou a explicar que as quadras cem e trezentos ficavam a oeste do Eixão.
Continuei sentado no meu lugar, preso ao cinto de segurança, mas com uma enorme vontade de olhar para trás para ver a cara de interrogação da mulher.
– Eixão?
O avião deu uma chacoalhada de modo que perdi aquela explicação. Ouvi outra, já pela metade.
– ... os melhores apartamentos são os mais antigos, são amplos e vazados.
– E o que é um apartamento vazado?
O candango chegou a ser irritante com sua longa e apaixonada explicação.
– Os prédios, conhecidos por blocos ficam deitados. São compridos em vez de altos. O que faz com que haja maior número de apartamentos no mesmo andar e provoca menos áreas externas, logo há muitos apartamentos com apenas uma frente. Os antigos têm frente e fundo do lado oposto. São os vazados. Todos os apês antigos têm cobogó.
– Cobogó? Que diabos é isso?
Adoro essa palavra formada pela primeira sílaba de três engenheiros que criaram uma parede de tijolos decorativos que permite ventilação e entrada de luz natural. De modo que só ouvi o final da frase do vizinho falante.
– ... além do que, são impressões digitais da cidade.
Daí, ela perguntou qual era o prato típico da cidade.
E ele foi muito criativo na resposta.
– Não há nenhum prato típico por que os moradores têm origens em todas as regiões brasileiras. Na cidade encontramos todos os temperos. Não há prato nem forma comum de preparar alguma iguaria. È usual a reunião das pessoas em torno de uma churrasqueira. Cada um preparando a carne, ou peixe, por que não, a seu modo. Quase todas as casas do Lago têm churrasqueiras. Quase todos os clubes têm churrasqueiras e também há muitas espalhadas nos parques públicos. O churrasco agrega as pessoas. O brasiliense aprendeu que para sobreviver ali deve unir-se com os outros, respeitando e ultrapassando barreiras regionais.
– Uau! Falou bonito! Só ouço as pessoas falarem mal de Brasília, que é onde todos os corruptos se reúnem para roubar o resto dos brasileiros...
Nesse momento a forasteira acertou o fígado de todos os brasilienses com um poderoso golpe direto.
– Pois é, esse lamentável rótulo pertencia ao Rio, enquanto capital. Mineiros pão-duros, baianos preguiçosos, paulistas trabalhadores. Rótulos servem apenas para garrafas. A corrupção está espalhada por todos os cantos do nosso país. Não se salva nenhum enquanto permanecer a impunidade. A diferença é que em Brasília as somas são maiores e a mídia está mais atenta.
A mulher percebeu que cometeu uma gafe ao falar mal de Brasília a um brasiliense. E procurou mudar de assunto:
– Faz muito tempo que você mora em Brasília?
Aliviado, o candango respondeu:
– Agora você já está falando como uma brasiliense legítima...
– Não entendi...
– Quando duas pessoas se conhecem, a primeira pergunta é: há quanto tempo mora na cidade? e a segunda, invariavelmente, é: de onde você veio? Agora, com o passar do tempo e o nascimento de uma geração de nascidos na capital, a coisa mudou um pouco. De qualquer forma, as perguntas sempre são bem-vindas para o início de uma conversa.
– E, há quanto tempo, afinal, você mora na cidade?
– Fui para lá no início da década de 70. No tempo em que a lenda dizia que quem se mudava para Brasília passava pelo estágio dos três dês. Deslumbramento, decepção e desespero. Deslumbramento com as largas avenidas, arquitetura monumental e proximidade com o poder. Decepção ao perceber que morar próximo ao poder não os transforma em nobres. Desespero por não se adaptar à cidade e querer ir embora.
– Era tão ruim assim?
– É uma cidade de gente guerreira. Os perdedores sempre reclamam. O tempo incorporou outro dê. O dê da demência.
– Como assim? Não entendi...
– É quando as pessoas se acostumam, se entrosam e passam a amar Brasília.
– Interessante essa lenda...
– Particularmente, adotei ainda os dês da devoção e defesa da cidade que tão bem me acolheu.
Nesse momento a conversa dos dois foi interrompida pelo forte barulho do retrocesso das turbinas no pouso do avião.
O avião taxiou e estacionou.
Abri a porta do compartimento acima da cabeça, peguei minha sacola e olhei para os que me proporcionaram um vôo mais agradável.Ainda pensei em falar ao conterrâneo que as sílabas de cobogó foram formadas a partir dos nomes de Coimbra, Boekmann e Góis, mas apenas me despedi com um gesto de cabeça.
* Foto de Carlos Vieira
7 comentários:
Engraçado, morar tão perto da Capital Federal e saber tão pouco... Bela crõnica, Mestre Klotz, me abriu os olhos para várias coisas que não sabia a respeito dessa grande cidade (que, devo admitir, passei a respeitar mais desde julho passado, mas por outros motivos, rs)
Interessantíssimo o lance do cabogó e outros detalhes.
ficanapaz
Tenho curiosidade muito grande para aquilo que chamam cultura inútil.
Quem nasce em São Paulo é paulista. Se da capital paulistano. Quem nasce no Rio de Janeiro é fluminense. Da capital é carioca. Quem nasce na cidade de Brasília é brasiliense da mesma forma daquele que nasce no Distrito Federal.
Interessante crônica sobre as peculiaridades do jeito brasiliense de ser. Se falassem em cobogó para mim imaginaria se tratar de um dizer nordestino. Vivendo e aprendendo.
O texto está de um coloquilidade cativante. Uma legítima conversa pescada por ouvidos atentos. Senti-me dentro do avião.
Beleza pura.
ótima crônica, feita por um escritor brasiliense que, ao que tudo indica, gosta de sê-lo.
também fui teleportado para o interior do aeroplano.
é uma crônica deveras instrutiva. desconhecia o tal borogodó.
Lido e comentado no Bar do Escritor. Mas reforço aqui o elogio.
Só um adendo: Brasília não foi inspirada num aeroplano, mas em uma borboleta. Palavras do Lúcio Costa, urbanista da capital, que disse:"não sei daonde saiu essa história ridícula de avião..."
Impecável, bem ao estilo Klotz, adoro tua prosa e sabes disso.
Maravilhoso saber o porquê da palavara cobogo, queria saber e procurando encontrei. Obrigada gênio. Amei seu blog. Virei aqui mais vezes. Bjs.
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