Podia estar fazendo sol. Este céu fechado e suas horas lúgubres, que deixam as coisas com esse ar soturno e sem vida aparente. Arroxeadas, por vezes. E o roxo é uma cor engraçada: na sua roupa, te deixa fashion; na sua cara é porque entrou em alguma roubada. Quando as coisas estão perdidas no caos, caqueticamente corroemos nossos cérebros...
Meio que desperto de uma multidão de pensamentos descontrolados e sem razão aparente. Sinto que eles estão agora mais rápidos e desconexos do que em qualquer outra ocasião. Procuro me acalmar; tenho que respirar fundo e me acalmar. Essa é a senha para o autocontrole e isso já me ajudou em diversas ocasiões. Concentração e foco, eis as palavras. Olho ao redor e tento me familiarizar com o que me cerca.
Estou parado defronte uma casa que recordo vagamente. Já andei muito por aqui, sei disso. Há muitos carros na porta e acho que reconheço alguns deles. Só não sei dizer de quem são. As coisas ainda estão muito nubladas. Puxo pelos cacos da memória e imagens distorcidas e sem conexão cruzam minha mente sedenta por respostas.
- Deixe-se guiar pelo que mais te toca - Um homenzinho vestido de branco, uma espécie de pigmeu vestido à moda inglesa do século XVIII, grita para mim, do outro lado da rua – Os caminhos estão aí, você vai encontrá-los!
- Maluco... – Acho que é meu primeiro pensamento sensato, hoje. Ele tenta se aproximar, mas me afasto rapidamente. Tenho que fazer um tremendo esforço de concentração somente para atravessar o asfalto. O engraçado é que agora sei aonde devo ir, mas não me recordo do porquê tenho me dirigir para lá.
Avanço pelas calçadas apinhadas, por entre as pessoas que seguem seus desígnios diários, suas rotas, rotinas e vidas. “I cross the streets without fear / everybody keeps the way clear”[1] . Não sei por que essa frase apareceu na cabeça. Veio de alguma lembrança que não me recordo. Aperto o passo para deixar as pessoas para trás e cruzo por fachadas e lugares, parques e bares, tudo vai ficando no caminho; eu caminho agora dominado as calçadas, todos desapareceram, quase como atendendo uma vontade íntima que não sabia explicar. “I walk this empty street / on the Boulevard of Broken Dreams”[2]. Sinto que estou chegando perto, mas do quê?
Um pequeno café, com ares parisienses me dá a resposta. Conheço esta entrada, já a atravessei diversas vezes. O ambiente é hospitaleiro e convida a se sentar e tomar algo. Olho para o bar vazio, os copos enfileirados, um jornal que pende no canto do balcão, ao lado de um cigarro que se consome sozinho no cinzeiro, duas pastas executivas, novas em folha lhe são vizinhas de um lado; do outro está uma bolsa caracterizada com duas enormes letras entrelaçadas, a assinatura dos estilistas que a fizeram. Um pequeno símbolo de status feminino. A Ferrari parada em frente ao estabelecimento é o masculino. Atravesso o portal e adentro o recinto, olhando em volta, tentando achar uma resposta. E a encontro.
Responde pelo nome de Hannah e está sentada de costas para a porta, sozinha e com os cabelos soltos. Bebe um capuccino frio e fuma um mentolado olhando para a paisagem que se descortina pela vidraça do fundo: um vasto campo de golfe, povoado de carrinhos vazios e tacos jogados no chão. Ela está triste, muito triste, posso sentir de longe e isso me atinge. Sua tristeza é minha tristeza, sua dor é minha dor e entendo agora porque isto acontece: partilhamos nossas vidas e almas há muito tempo.
A simples visão dela me faz relembrar muita coisa; brigamos ontem (ou antes disso) por alguma coisa que não valia realmente a pena. Saí pela cidade meio louco e me embriaguei diversas vezes em diversos lugares, tentando tirá-la dos meus pensamentos, mas quanto mais bebia, mais me lembrava, quanto mais tentava esquecer, mas ela penetrava fundo na minha imaginação e dançava nua na sala do apartamento, me fazendo refém e escravo de suas vontades, mesmo dentro da minha mente. Eu corri o máximo que pude e tudo que consegui deixar para trás foram minhas vontades. Não havia como escapar, estávamos ligados para o todo sempre, apontados para o nunca. Sento-me do lado dela, que impávida, fita o horizonte e me ignora “Eu não tenho nenhum interesse em esconder nada de você / Isso nunca fez parte dos meus planos”[3].
Engraçado pensar nisso agora. Peço desculpas por ter sido um tolo e por todas as vezes que fiz besteira com base em pequenas coisas, esses estorvos loucos que colocamos nos nossos próprios caminhos. Parece desconfortá-la, tudo o que digo. Desfio um rosário de escusas, me penitenciando por cada ato ruim – o rosto dela se contrai - relembro cada fato bom – fazendo com que uma lágrima solitária escorra pelo lado esquerdo de sua face. Tento interromper o trajeto da gota, mas ela balança a cabeça para longe, como se espantasse um pensamento ruim. Fico ali sem ação, sem saber o que fazer.
Como se um véu mágico tivesse sido tirado da frente meus olhos, as pessoas se materializam do nada e vejo que o lugar está cheio; as pessoas vem e vão, conversam sobre suas vidas e frustrações, êxitos e fracassos, tudo com uma ótica própria e defensiva. Percebo que Luísa, nossa melhor amiga, se aproxima. Ela trabalha comigo em uma gravadora e é uma espécie de cupido do nosso relacionamento. Foi quem nos apresentou e é também quem sempre aparece para botar panos quentes todas as vezes que faço bobagem. Armo um sorriso agradecido para ela e as deixo conversarem sozinhas. Isso provavelmente irá me ajudar. Dou uma volta pelo salão, tendo a nítida noção que estou invisível para todos estes que falam somente de si e de seus mundinhos particulares. Não resistindo à curiosidade, retorno para minha cadeira. Hannah está cabisbaixa, fitando uma pequena fotografia, enquanto Luísa a abraça:
- Acho que você deveria dar uma chance para o Jefferson. É um bom rapaz e têm tudo a ver com você. É hora de seguir em frente.– Traidora! Como ela diz uma coisa dessas! -
- Eu... Eu simplesmente não consigo. Ele sempre está comigo, você não vê?
- Um ano é muito tempo, até mesmo para o que vocês sentiam... É hora de você seguir em frente e deixá-lo para trás de uma vez.
- O que mais me dói, é que ele se foi e nem tive chance de me despedir direito... Havíamos brigado por uma besteira minha. Foi tudo minha culpa.
Percebendo o tanto que Hannah havia ficado abalada com estas palavras, automaticamente me levantei para abraçá-la, quando pude ver detalhadamente a foto que ela segurava. Um santinho, destes que se dão em missas de sétimo dia, onde se encontrava minha foto e logo abaixo minha data de nascimento e o dia de hoje, só que um ano atrás. Aquilo fez com que eu perdesse imediatamente o equilíbrio e desabei pesadamente no chão. As imagens brotaram de maneira rápida e grotesca na minha cabeça: dirigindo sob uma chuva torrencial, com uma garrafa nas mãos, gritando e gesticulando para todos os lados, ouvindo aquelas músicas no último volume, a derrapagem, o meio-fio e o choque frontal com um caminhão carregado; os quinze minutos que agonizei no meio das ferragens, sussurrando o nome dela e pedindo a chance de revê-la somente mais uma vez, a dormência que me acometeu de pouco em pouco e por fim a escuridão que tomou conta de tudo. Uma longa e negra noite que caiu sobre meus olhos, até o momento em que me vi em frente a uma casa. A nossa casa. Um ano depois da minha morte, eu estava de volta. Mas para quê? Para sofrer com uma proximidade que não é tátil, ou para assombrar um amor que na se pode concretizar? Para vê-la se decompor em vida, tal qual meu corpo físico vinha fazendo nos últimos 365 dias? Como pode meu amor por ela estar vivo, mesmo eu estando morto? “I believe in never / I believe in all the way”[4]
- Para guiá-la. – A voz veio do lado direito do salão. Me virei e dei de cara, não literalmente, com o mesmo anão que havia me gritado na rua, horas antes.
O pequeno ser apontou o lado de fora do café. Hannah estava em pé, abraçada à Luísa, e ainda chorava. Soltou-se devagar, limpou os olhos com um lenço dado pela amiga e se despediu. Dirigiu-se para o carro, abriu a porta e estacou de repente e se virou. Olhou para minha direção e o brilho nos olhos dela me deu a plena certeza que conseguia enfim me ver. Seu sorriso cobria o rosto, quando seu corpo foi violentamente lançado no espaço, junto com partes do veículo. Um caminhão desgovernado, atravessou a contra-mão, cruzando a pista e se chocando com os carros que estavam estacionados. O horror tomou conta de mim e atravessei café, lançando mesas e pessoas para todos os lados, sem nem me lembrar que não conseguiria fazer o mesmo cinco minutos atrás. Ela estava caída no meio dos destroços, com o corpo dobrado de várias maneiras, apontando múltiplas fraturas e com o rosto parcialmente desfigurado. Seus olhos estavam cravados no céu e a boca semi-aberta parecia pedir um socorro que ninguém neste mundo poderia dar. Ajoelhei-me ao lado dela, aos prantos e implorando por ajuda, por alguém que a levasse a um hospital e tratasse os seus ferimentos “And if you go, I gonna go with you / and if you die, I gonna die with you”[5] . Estava louco de desespero, quando uma pequena mão pousou no meu ombro:
- Não há nada que se possa fazer por este corpo – era o pigmeu albino outra vez.
- E o que você quer eu faça? – gritei – Que a deixe sozinha?
- Você está aqui justamente para ajudá-la neste momento difícil - mostrou algo do outro lado da rua.
Olhei para onde o pequeninho apontava e Hannah estava de pé, com as mãos no rosto, olhando incrédula para o próprio corpo destroçado. Aproximei-me devagar e percebi o quanto estava assustada:
- Não... Não é possível. Você está morto!
- Verdade. Mas agora, você também está.
- Isso não é possível!
- É estranho e confuso, mas a gente se acostuma.
Lentamente a abracei e deixei com que seus temores se dissipassem.
- E agora, o que acontece com a gente?
- Isso eu não sei. Mas o importante não é o que vai acontecer, mas sim que enfrentaremos juntos.
- Você jura? – se agarrava a mim assustada.
- Quero que um raio caia na minha cabeça se estiver mentindo – ainda abraçado, comecei a cantarolar – “We got the empire, now as then / We don't doubt, we don't take reflection / Lucretia, my direction, dance the ghost with me...[6]
Não importa em qual mundo estamos juntos, só que estamos juntos.
Meio que desperto de uma multidão de pensamentos descontrolados e sem razão aparente. Sinto que eles estão agora mais rápidos e desconexos do que em qualquer outra ocasião. Procuro me acalmar; tenho que respirar fundo e me acalmar. Essa é a senha para o autocontrole e isso já me ajudou em diversas ocasiões. Concentração e foco, eis as palavras. Olho ao redor e tento me familiarizar com o que me cerca.
Estou parado defronte uma casa que recordo vagamente. Já andei muito por aqui, sei disso. Há muitos carros na porta e acho que reconheço alguns deles. Só não sei dizer de quem são. As coisas ainda estão muito nubladas. Puxo pelos cacos da memória e imagens distorcidas e sem conexão cruzam minha mente sedenta por respostas.
- Deixe-se guiar pelo que mais te toca - Um homenzinho vestido de branco, uma espécie de pigmeu vestido à moda inglesa do século XVIII, grita para mim, do outro lado da rua – Os caminhos estão aí, você vai encontrá-los!
- Maluco... – Acho que é meu primeiro pensamento sensato, hoje. Ele tenta se aproximar, mas me afasto rapidamente. Tenho que fazer um tremendo esforço de concentração somente para atravessar o asfalto. O engraçado é que agora sei aonde devo ir, mas não me recordo do porquê tenho me dirigir para lá.
Avanço pelas calçadas apinhadas, por entre as pessoas que seguem seus desígnios diários, suas rotas, rotinas e vidas. “I cross the streets without fear / everybody keeps the way clear”[1] . Não sei por que essa frase apareceu na cabeça. Veio de alguma lembrança que não me recordo. Aperto o passo para deixar as pessoas para trás e cruzo por fachadas e lugares, parques e bares, tudo vai ficando no caminho; eu caminho agora dominado as calçadas, todos desapareceram, quase como atendendo uma vontade íntima que não sabia explicar. “I walk this empty street / on the Boulevard of Broken Dreams”[2]. Sinto que estou chegando perto, mas do quê?
Um pequeno café, com ares parisienses me dá a resposta. Conheço esta entrada, já a atravessei diversas vezes. O ambiente é hospitaleiro e convida a se sentar e tomar algo. Olho para o bar vazio, os copos enfileirados, um jornal que pende no canto do balcão, ao lado de um cigarro que se consome sozinho no cinzeiro, duas pastas executivas, novas em folha lhe são vizinhas de um lado; do outro está uma bolsa caracterizada com duas enormes letras entrelaçadas, a assinatura dos estilistas que a fizeram. Um pequeno símbolo de status feminino. A Ferrari parada em frente ao estabelecimento é o masculino. Atravesso o portal e adentro o recinto, olhando em volta, tentando achar uma resposta. E a encontro.
Responde pelo nome de Hannah e está sentada de costas para a porta, sozinha e com os cabelos soltos. Bebe um capuccino frio e fuma um mentolado olhando para a paisagem que se descortina pela vidraça do fundo: um vasto campo de golfe, povoado de carrinhos vazios e tacos jogados no chão. Ela está triste, muito triste, posso sentir de longe e isso me atinge. Sua tristeza é minha tristeza, sua dor é minha dor e entendo agora porque isto acontece: partilhamos nossas vidas e almas há muito tempo.
A simples visão dela me faz relembrar muita coisa; brigamos ontem (ou antes disso) por alguma coisa que não valia realmente a pena. Saí pela cidade meio louco e me embriaguei diversas vezes em diversos lugares, tentando tirá-la dos meus pensamentos, mas quanto mais bebia, mais me lembrava, quanto mais tentava esquecer, mas ela penetrava fundo na minha imaginação e dançava nua na sala do apartamento, me fazendo refém e escravo de suas vontades, mesmo dentro da minha mente. Eu corri o máximo que pude e tudo que consegui deixar para trás foram minhas vontades. Não havia como escapar, estávamos ligados para o todo sempre, apontados para o nunca. Sento-me do lado dela, que impávida, fita o horizonte e me ignora “Eu não tenho nenhum interesse em esconder nada de você / Isso nunca fez parte dos meus planos”[3].
Engraçado pensar nisso agora. Peço desculpas por ter sido um tolo e por todas as vezes que fiz besteira com base em pequenas coisas, esses estorvos loucos que colocamos nos nossos próprios caminhos. Parece desconfortá-la, tudo o que digo. Desfio um rosário de escusas, me penitenciando por cada ato ruim – o rosto dela se contrai - relembro cada fato bom – fazendo com que uma lágrima solitária escorra pelo lado esquerdo de sua face. Tento interromper o trajeto da gota, mas ela balança a cabeça para longe, como se espantasse um pensamento ruim. Fico ali sem ação, sem saber o que fazer.
Como se um véu mágico tivesse sido tirado da frente meus olhos, as pessoas se materializam do nada e vejo que o lugar está cheio; as pessoas vem e vão, conversam sobre suas vidas e frustrações, êxitos e fracassos, tudo com uma ótica própria e defensiva. Percebo que Luísa, nossa melhor amiga, se aproxima. Ela trabalha comigo em uma gravadora e é uma espécie de cupido do nosso relacionamento. Foi quem nos apresentou e é também quem sempre aparece para botar panos quentes todas as vezes que faço bobagem. Armo um sorriso agradecido para ela e as deixo conversarem sozinhas. Isso provavelmente irá me ajudar. Dou uma volta pelo salão, tendo a nítida noção que estou invisível para todos estes que falam somente de si e de seus mundinhos particulares. Não resistindo à curiosidade, retorno para minha cadeira. Hannah está cabisbaixa, fitando uma pequena fotografia, enquanto Luísa a abraça:
- Acho que você deveria dar uma chance para o Jefferson. É um bom rapaz e têm tudo a ver com você. É hora de seguir em frente.– Traidora! Como ela diz uma coisa dessas! -
- Eu... Eu simplesmente não consigo. Ele sempre está comigo, você não vê?
- Um ano é muito tempo, até mesmo para o que vocês sentiam... É hora de você seguir em frente e deixá-lo para trás de uma vez.
- O que mais me dói, é que ele se foi e nem tive chance de me despedir direito... Havíamos brigado por uma besteira minha. Foi tudo minha culpa.
Percebendo o tanto que Hannah havia ficado abalada com estas palavras, automaticamente me levantei para abraçá-la, quando pude ver detalhadamente a foto que ela segurava. Um santinho, destes que se dão em missas de sétimo dia, onde se encontrava minha foto e logo abaixo minha data de nascimento e o dia de hoje, só que um ano atrás. Aquilo fez com que eu perdesse imediatamente o equilíbrio e desabei pesadamente no chão. As imagens brotaram de maneira rápida e grotesca na minha cabeça: dirigindo sob uma chuva torrencial, com uma garrafa nas mãos, gritando e gesticulando para todos os lados, ouvindo aquelas músicas no último volume, a derrapagem, o meio-fio e o choque frontal com um caminhão carregado; os quinze minutos que agonizei no meio das ferragens, sussurrando o nome dela e pedindo a chance de revê-la somente mais uma vez, a dormência que me acometeu de pouco em pouco e por fim a escuridão que tomou conta de tudo. Uma longa e negra noite que caiu sobre meus olhos, até o momento em que me vi em frente a uma casa. A nossa casa. Um ano depois da minha morte, eu estava de volta. Mas para quê? Para sofrer com uma proximidade que não é tátil, ou para assombrar um amor que na se pode concretizar? Para vê-la se decompor em vida, tal qual meu corpo físico vinha fazendo nos últimos 365 dias? Como pode meu amor por ela estar vivo, mesmo eu estando morto? “I believe in never / I believe in all the way”[4]
- Para guiá-la. – A voz veio do lado direito do salão. Me virei e dei de cara, não literalmente, com o mesmo anão que havia me gritado na rua, horas antes.
O pequeno ser apontou o lado de fora do café. Hannah estava em pé, abraçada à Luísa, e ainda chorava. Soltou-se devagar, limpou os olhos com um lenço dado pela amiga e se despediu. Dirigiu-se para o carro, abriu a porta e estacou de repente e se virou. Olhou para minha direção e o brilho nos olhos dela me deu a plena certeza que conseguia enfim me ver. Seu sorriso cobria o rosto, quando seu corpo foi violentamente lançado no espaço, junto com partes do veículo. Um caminhão desgovernado, atravessou a contra-mão, cruzando a pista e se chocando com os carros que estavam estacionados. O horror tomou conta de mim e atravessei café, lançando mesas e pessoas para todos os lados, sem nem me lembrar que não conseguiria fazer o mesmo cinco minutos atrás. Ela estava caída no meio dos destroços, com o corpo dobrado de várias maneiras, apontando múltiplas fraturas e com o rosto parcialmente desfigurado. Seus olhos estavam cravados no céu e a boca semi-aberta parecia pedir um socorro que ninguém neste mundo poderia dar. Ajoelhei-me ao lado dela, aos prantos e implorando por ajuda, por alguém que a levasse a um hospital e tratasse os seus ferimentos “And if you go, I gonna go with you / and if you die, I gonna die with you”[5] . Estava louco de desespero, quando uma pequena mão pousou no meu ombro:
- Não há nada que se possa fazer por este corpo – era o pigmeu albino outra vez.
- E o que você quer eu faça? – gritei – Que a deixe sozinha?
- Você está aqui justamente para ajudá-la neste momento difícil - mostrou algo do outro lado da rua.
Olhei para onde o pequeninho apontava e Hannah estava de pé, com as mãos no rosto, olhando incrédula para o próprio corpo destroçado. Aproximei-me devagar e percebi o quanto estava assustada:
- Não... Não é possível. Você está morto!
- Verdade. Mas agora, você também está.
- Isso não é possível!
- É estranho e confuso, mas a gente se acostuma.
Lentamente a abracei e deixei com que seus temores se dissipassem.
- E agora, o que acontece com a gente?
- Isso eu não sei. Mas o importante não é o que vai acontecer, mas sim que enfrentaremos juntos.
- Você jura? – se agarrava a mim assustada.
- Quero que um raio caia na minha cabeça se estiver mentindo – ainda abraçado, comecei a cantarolar – “We got the empire, now as then / We don't doubt, we don't take reflection / Lucretia, my direction, dance the ghost with me...[6]
Não importa em qual mundo estamos juntos, só que estamos juntos.
[1] - “Eu cruzo as ruas sem medo / todo mundo deixa o caminho livre” Caetano Veloso – London, London.
[2] - “Eu caminho por essa rua vazia / na alameda dos sonhos despedaçados” Green Day – Boulevard of Broken Dreams.
[3] - Gonzallez – Sob o calor do momento.
[4] - “Eu acredito no nunca / Eu acredito no até o fim” – Smashing Pumpkins – Thru the eyes of ruby.
[5] - “E se você for, eu quero ir com você / E se você morrer, eu quero morrer com você” – System of a Down – Lonely Day
[6] “Nós temos o império, assim como antes / Nós não duvidamos, não paramos para refletir / Lucretia, minha direção,dance a morte comigo” – The Systers of Mercy – Lucretia, my Reflection.
4 comentários:
Bah, rapaz... Tu escreve muito... Esses enxertos musicais são fantásticos e esclarecedores, aliás, honrado estou por ter citado um trecho de uma música da minha banda, Gonzallez. Tá de parabéns, brother!!!!
o conto é de uma profundidade psicológica impar e um final supreendente bem ao meu gosto. Adoraria ter escrito e fiquei com uma inveja saudável. rs
Excelente, altamente recomendável.
caramba, Ovelha!
escrevestes um puta roteiro de filme!
não consegui desgrudar os olhos do monitor um segundo sequer.
leitura que "prende", você conseguiu o que todos nós buscamos.
tá de parabéns.
sem falar nas referências musicais. só bandas duca.
Como gosto desse espaço, a prosa vinga-se da poesia aqui, e Deveras, você é um de meus preferidos...
Adoro todas as referências que imprimiu.
Muito bom!
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