sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

UMA ESTÓRIA DE CARNAVAL

É, eu sei. Ele foi pescar com os amigos, no Carnaval do ano passado.

Ela tinha sonhado com uma mini-lua-de-mel à beira-mar, em alguma pousada do lado inacessível da Ilha, aonde só se pode chegar de jipe ou de barco. Iriam no jipe dele, rindo das dificuldades da trilha entre cachoeiras e coqueiros, lambuzados de repelente para não serem devorados pelos borrachudos, rolariam na areia à noite e assariam peixe na brasa tomando água de coco.

Seria o primeiro Carnaval que os dois passariam juntos, depois de quase um ano de namoro. Mas ele foi pescar com os amigos. Disse que todo ano fazia isso e não ia mudar.

Por isso é que ela, no ano passado, aceitou o convite da amiga que não viajara porque tinha rolado um frila para entregar na quinta, mas estava solteira e muito a fim de aproveitar as noites de farra para conquistar um amor definitivo.

Ela aceitou o convite achando que ia ser uma tremenda roubada, imaginou as duas dançando sozinhas a noite inteira com uma cerveja na mão – sempre achou um horror isso de mulher dançando sozinha, em toda festa tem um monte de mulher dançando sozinha. Vestiu o conjunto bege que o namorado dizia que parecia fantasia de Carnaval, imagina, tão discreto, bege... mas tinha um decote fundo contornado por duas linhas em dourado. Pôs na testa o colar egípcio de moedinhas, achou-se linda no espelho.

A amiga tinha decidido que chegariam cedo, detesta homem suado e entrar em baile de Carnaval, só no começo, quando eles estão ainda bem sequinhos.

Quis o destino que, assim que adentraram o salão de baile do clube de futebol, fossem cercadas por quatro rapazes animados e bonitos que as puxaram para dançar. Um de colar de havaiana, um que dançava equilibrando na testa a latinha de cerveja, um de boné que se chamava Fred e ficou com a amiga dela, e Marcelo, o dos olhos verdes, que se apossou dela como co-folião.

Mais tarde as namoradas dos outros dois rapazes chegaram e os oito se mantiveram juntos a festa toda, e pela madrugada ela e a amiga já estava íntimas das outras duas garotas.

Na noite seguinte todos assistiram ao desfile das escolas de samba no camarote de uma
empresa de telefonia, com credenciais conseguidas pela amiga jornalista; no domingo voltaram ao clube; na segunda-feira foram a um baile de cabeças fantasiadas na casa de uma socialite amiga do Fred.

A essa altura ela e Marcelo já tinham passado por todos os estágios emocionais de um amor: o flerte e a conquista no primeiro dia, troca de olhares, abraços, um beijo quase roubado, quase dado, o encantamento um com o outro durante as dez horas que passaram juntos, provocação e atiçamento, negaceio e posse. No sábado tinham formado um par, inegavelmente um par, ele já sabia que ela tinha namorado e disse que não se importava, vamos ficar juntos nestes cinco dias, e sejoquedeuzquizer.

No domingo tinham se transformado num casal, ele ciumento perguntava pra onde ela estava olhando, puxava-a possessivo quase com fúria, cantava num arremedo de alegria desafiando os outros machos com a mão esquerda socando o ar enquanto insinuava a mão direita por baixo da blusa dela e ela se desvencilhava zangada, escuta, sem essa, tá? Eu tenho namorado! Se você não consegue ficar comigo sem ser inconveniente, não quero.

Então aquela festa da segunda-feira na casa da grã-fina não podia mesmo rolar muito legal, estava um clima meio assim, entende? Marcelo sorumbático pelos cantos da casa enquanto os outros sete tentavam dançar como se nada houvesse. Uma hora os três amigos dele a arrastaram pelo chão, dois puxando pelos tornozelos e outro por uma das mãos – a calça branca ficou escura no bumbum – e a levaram até Marcelo:

– Conversem! Resolvam essa história!

Os dois ficaram se olhando, os amigos foram embora e ela ainda sentada no chão disse, olhando para o alto:

– Olha, Marcelo, não faz gênero, tá? Eu não resisto a homem triste e sei que você não é assim. Está só fazendo tipo.

E esta era a situação na terça-feira do Carnaval do ano passado, quando estavam de novo no SPFC, tentando recuperar o clima feliz do primeiro dia e no último intervalo da banda ela foi ao banheiro. No caminho, sentiu o puxão no braço:

– Ana Rute?! O que você está fazendo aqui??

Ela se voltou e viu o namorado, bronzeado, ombros descascando de excesso de sol. Uma incredulidade insuportavelmente alegre fez com que ela perguntasse o óbvio:

– Lucas, você tá aqui?

E depois:

– Quando voltou?

– De longe te vi, pensei “reconheço esse cabelo em qualquer lugar do mundo”.

Aí ele repetiu:

– O que você está fazendo aqui? Voltei hoje, te liguei, deixei recado no seu celular.

– Deixa eu retocar a maquiagem, quando eu voltar a gente conversa.

Ela entrou no banheiro e viu uma ex-colega de colégio, que gritou:

– Ana Rute Lemos, você está linda!

Olhou-se no espelho e achou que estava mesmo, o rosto afogueado pela dança ou pelo encontro, um pouco descabelada, os olhos brilhando, a cintura acentuada pelo tecido da canga verde, curtinha, presa com um broche para o lado, as pernas morenas brilhando sobre as sandálias.

Quando saiu do banheiro, o namorado tinha sumido. Ficou esperando que ele voltasse, não o viu mais. Marcelo veio buscá-la para dançar, ela recusou:

– Meu namorado voltou.

Mas não o viu na multidão que passava, casais e mais casais abraçados no é hoje-só-só-só-vai-acabar-já-já. A amiga jornalista reportou que ele estava dançando agarrado a uma nariguda de cabelos cacheados e mini-blusa azul, com uma barriga sensacional, e que ela desencanasse e fosse com o Marcelo. Mas ela ficou ali, teimosa, na esperança de ver Lucas de novo. Não viu nenhum dos dois, nem ele nem a nariguda.

À saída do baile ainda achava que Lucas ia aparecer para levá-la para casa e foi a custo que a amiga convenceu-a a ir embora.

No celular, de fato, havia um torpedo: “Oi amor voltei me liga.”

Passaram o ano inteiro brigando, porque ela não perdoa ter sido abandonada no clube, esperando que ele a puxasse para dançar e depois esperando ser levada para casa, e ele admite que foi com a nariguda para um motel, “era Carnaval, pô!”, mas garante que nunca mais viu a criatura, “que aliás não chega aos seus pés!”. E outra coisa: se ela tivesse atendido ao telefone quando ele ligou, ele nem teria conhecido aquela menina. A culpa, portanto, foi dela. Ou pelo menos é o que ele acha.

Por outro lado, Marcelo não desapareceu do cenário, telefona, manda flores, mas ela diz a Lucas que “foi fiel o tempo todo”, enquanto ele alega que a outra “foi só" uma transa de Carnaval, além de discordar de que ela tenha sido fiel.

Pior: aquela grande amiga está até hoje com o Fred e vão se casar no fim do ano, e o Marcelo vai ser padrinho, o que complica ainda mais as coisas, porque adivinha quem vai ser madrinha?

Neste Carnaval ela e Lucas foram para a Ilha, para a praia dos sonhos dela, ele pela primeira vez em quinze anos deixando de ir pescar com o grupo dos amigos de infância.

Desconfio que passaram os quatro dias discutindo o Carnaval passado.

4 comentários:

Deveras disse...

Ah, os carnavais... Quantas estórias, quantas histórias. Ainda bem que sempre pego minha "traia" de pesca e caio fora da cidade... Bom, trazer peixxes na volta não é problema. È só passar na peixaria mais próxima...

Belo conto.

ficanapaz

Betty Vidigal disse...

putz, Cristiano! Passa na peixaria?
o comentário possível é: "deveras??"
(hm, vc já deve ter ouvido mto isso, né? mto.)

bjs, brigada pelo comentário e pela leitura.

medusa que costura insanidades disse...

vou dizer:tenho um pouco de medo da liz
ela é tudo que eu queria ser e nunca serei
imagino um diálogo entre os olhos dela e Lispector,sem fala nenhuma,só olhares
é sábia,culta,mas sabe brincar com uma inteligência espantosa
esses detalhes impregnantes,essa forma de narrar,de dizer que transporta pra dentro da história....será que um dia aprendo algo?

Betty Vidigal disse...

Poxa, Rita...
brincar é facinho, mais fácil do q dizer coisas profundas. Esse conto é isso, pura brincadeira.

Vc escreve mto bem, menina!