Para Onde Vão os Fernandos
Ele passara por poucas e boas, mantendo a todo custo a postura de um gentleman no espírito e proletário da propaganda no dia-a-dia. Apesar dos cabelos brancos e do corpo desgastado por anos de noites maldormidas e finais de semana perdidos, ainda dava duro pra garantir o uísque nacional das sextas na varanda do velho e confortável apê em Higienópolis. Tinha olhos para observar as coisas que importavam e cérebro para gerar idéias que não vingavam, projetos que ficavam na gaveta, conversas geniais que poucos tinham ouvidos para ouvir. Rotina na sua vida de publicitário veterano num mercado sado-maso de crianças tolas, que ditavam regras loucas e encontravam prazer no sofrimento alheio.
Caminhava como quem não quer nada na Avenida Angélica, lusco-fusco de automóveis, faróis e luzes esmaecidos competindo com o sol recém-posto atrás dos prédios, naquela hora em que o mundo paira no vácuo entre o dia e a noite. Pensava nos jobs a terminar, na viagem rápida de sexta-feira, na revista Asas na gaveta do escritório, no almoço com o genro-prodígio amanhã. Foi assim que a moto o colheu, seu corpo dando piruetas de acrobata de circo mambembe. E, enquanto o corpo beijava o chão, obedecendo à lei da gravidade, algo nele continuou a subir e a subir, até se descobrir lá em cima, olhando para si mesmo, uma maçaroca ensangüentada no meio-fio. Putaquepariu! Frio no estômago, mas que estômago, uma parte daquilo que estava ali, espalhado no asfalto? Ih, fodeu...
Ou não. Começou com um formigamento na ponta dos dedos. Que dedos, seus dedos tinham ficado lá em baixo, merda! Mas era formigamento sim, um monte de pequenas pontadinhas e coceirinhas pelo corpo, todas as células, moléculas, átomos se agitando, se mexendo. E sabia-se lá se ainda tinha átomos, pois de que era feito agora, já que a sua parte física tinha se ido? Olhou para cima, esperando ver algo que o convertesse finalmente a alguma crença. Nada. Cadê o facho de luz que sempre dizem surgir nessa hora? As luzes, por favor! Pelo menos as luzes. Nada, nada, nada.
Mas não estava decepcionado. As coisas estavam acontecendo. O seu eu dissolvia-se, dividindo-se em pedaços menores e menores, cada vez mais numerosos, até fundir-se com algo poderoso e único. E tão grande... A única coisa que sabia era que aquela sensação se espalhava, se amplificava. E era boa. Se a morte fosse aquilo, era... Suspirou, emocionado. Era muito boa. Muito confortável. Nunca tinha imaginado algo assim. Era a sensação incomparável de uma volta ao lar, a compreensão de que a vida num corpo físico nada mais é do que um estado passageiro. Sim, que peso fora aquele corpo durante tantos anos! O corpo que doía, que coçava, que cansava, que envelhecia, que morria... Agora, sim, sentia-se à vontade, pois estava nu por inteiro. Encontrava-se em todos os lugares, em todas as épocas, em todas as coisas... Sentia as emoções, os gostos, os cheiros, os prazeres e as dores de um Universo. Tornara-se uma ampliação gigantesca do pequeno ser que fora. E que já não existia mais. Ele, Fernando, também ia sumindo como o resto de seus pensamentos. Afinal os átomos não são conscientes da própria existência. Nem precisam ser. Estava realizado. Voltara a um estado de absoluta perfeição.
Olhou para a amiga que o ouvia.
– Então acordei.
– Hum, Fernando, isso não parece coisa sua.
– É só um sonho, no sonho pode tudo...
– Posso usar isso num conto?
– Pode, sim. Mas tenho histórias mais interessantes. Já ouviu aquela sobre...
Fim.
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Giulia Moon
Um comentário:
Me identifico muito com estes contos on�ricos... Muito boa a sacada, bela condu�o.
ficanapaz
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