Era uma manhã indecisa
No porto do Recife,
e sentado eu via
as águas carregarem embora
toda a escória
da cidade.
Tudo o que foi útil num dia
e no outro deixou de ser.
Vi uma garrafa pet verde
andar sobre as águas,
como um jesus
feito de plástico.
Mas era só uma garrafa pet verde,
fazendo milagre num mar esverdeado
com um andar solene,
como que indo pr'algum lugar
onde seu corpo
pudesse ser sepultado.
Em seguida
veio uma sacola antiga
do bompreço,
cuja lápide dizia:
"Orgulho de ser Nordestino".
Foi gestante na noite passada
d'alguma cana barata
ou d'um vinho suco-de-uva-tinto
de dois reais.
Deu a luz em plena madrugada
do Recife Antigo.
O sol já ia aumentando,
e vi um único sapato
que apressado
ia boiando,
de repente
me peguei pensando
num Saci Pererê descalço.
andando pelas ruas quentes do Recife.
Pois foi então que me joguei
para ser mais um desses objetos inúteis
que a correnteza toma pra si
a responsabilidade de arrumar um fim.
Mas um canoeiro,
cuja profissão é salvar os bêbados
que desejam morrer assim,
deu-me a mão
e me tirou dali.
André Espínola
3 comentários:
Parabéns, André, pelo "poema verde auto-sustentável". Necessário, reflexivo..., e muito bonito.
Maravilhoso este texto. As imagens literárias podem ser vivenciadas. A sacola gestante então... Genial. É vasto perceber como no suposto fim eterno de cada coisa que a correnteza leva é que apreciamos todo um passado do que poderia ter existido. E se nos ativermos ao nosso cotidiano nesta hora, perceberemos que muitas vezes, ao apenas passar pela correnteza da vida, somos observados por muitos bêbados prestes a mergulhar no rio verde das memórias, e com certeza, recebemos valores muitos melhores que aqueles que nos fizeram mergulhar. Parabéns.
Mto bom isto aqui, André:
"Vi uma garrafa pet verde
andar sobre as águas,
como um jesus
feito de plástico.
Mas era só uma garrafa pet verde,
fazendo milagre num mar esverdeado"
bjs
Postar um comentário