Madrugada e toca o telefone. Checo o horário no canto inferior direito da tela. 2:35. Diante do micro, sorrio filosoficamente com meus zíperes, antecipando a razão do chamado.
Naturalmente, quem liga a essa hora não espera ser atendido por alguém que esteja alerta e que já estivesse acordado antes do toque. Espera um alô alarmado, antecipante de desgraças inomináveis, todos os receios por seres queridos vindo à tona.
Antes de apertar o botãozinho verde no fone, resvalo os olhos pelo identificador de chamadas. Como eu previa. De uma outra vez, foi 22. Hoje, O DDD do celular de quem liga é 21. Isso não quer dizer nada, claro. O chamado poderia vir de São Paulo e ter a mesma motivação. O fato de que este veio do Rio apenas reforça meu palpite. Que se confirma assim que atendo, com a entonação mais deliberadamente doce, tranqüila e sorridente que consigo conferir à voz. A resposta ao meu alegre “alô...” vem num grito:
– Mããe!!
– Oi, filhinha... – respondo ainda mais docemente, tranqüilamente, sorridentemente, alongando as tônicas. Uma mulher alegre e surpresa.
– Mãe, eu fui estuprada!
– É mesmo, filhinha? (tom de curiosidade interessada e bevenolente)
– Mãe, eu fui assaltada! – a menina explica com indignação, ainda aos gritos. Decerto pensou “essa tonta não sabe o que significa estuprada”.
– Que coisa, né, filhinha...
– Mãe, me ajuda! (aos soluços)
– Tá bom, fia. Eu vou te ajudar. Mas antes me diz uma coisa...
– ...
– Como é que você chegou no Rio tão rápido?
Ouço murmúrios e cochichos. Uma voz de homem vem ao telefone:
– Dá pra ver aí de onde tá ligando, é?
– Dá.... (respondo como quem previne, não como quem concorda)
– Mas é residência, aí?
– É... (mesmo tom)
– Então como que dá pra ver?
– Dá. (Desta vez, em tom de quem diz “ué, você não sabe?”. Eu poderia acrescentar “em que mundo você vive?” ou algum epíteto: “Dá, seu panaca”. Mas pra quê?)
– Ah, tudo bem. Vou ligar pra outro número. Toda noite eu pego alguém, mesmo...
Pega, é? Fico pensando... quem é que ainda cai nessa?
Isso foi há um mês.
Ontem, de novo. Só que a ligação foi à tarde, a cobrar e a voz aterrorizada desta vez era a de um rapaz.
– Mãe, me pegaram!
– Já era tempo, né, filho...! Pegaram todos os seus amigos, eu tava começando a ficar preocupada com você! (voz risonha)
Gargalhada bem humorada do outro lado.
– Valeu...
E clic. Certamente também partiu pra outra... e também, certamente, cáspite, toda tarde pega alguém...
Avisar à polícia? Rá! Já tentei. E isso ainda no século passado, quando ninguém ouvira falar nesse tipo de golpe. Não se interessaram por saber o número do ligador, embora a conversa tenha sido bem mais convincente – não que tenha me convencido –, embora não fosse um celular e embora fosse de São Paulo mesmo.
Naturalmente, quem liga a essa hora não espera ser atendido por alguém que esteja alerta e que já estivesse acordado antes do toque. Espera um alô alarmado, antecipante de desgraças inomináveis, todos os receios por seres queridos vindo à tona.
Antes de apertar o botãozinho verde no fone, resvalo os olhos pelo identificador de chamadas. Como eu previa. De uma outra vez, foi 22. Hoje, O DDD do celular de quem liga é 21. Isso não quer dizer nada, claro. O chamado poderia vir de São Paulo e ter a mesma motivação. O fato de que este veio do Rio apenas reforça meu palpite. Que se confirma assim que atendo, com a entonação mais deliberadamente doce, tranqüila e sorridente que consigo conferir à voz. A resposta ao meu alegre “alô...” vem num grito:
– Mããe!!
– Oi, filhinha... – respondo ainda mais docemente, tranqüilamente, sorridentemente, alongando as tônicas. Uma mulher alegre e surpresa.
– Mãe, eu fui estuprada!
– É mesmo, filhinha? (tom de curiosidade interessada e bevenolente)
– Mãe, eu fui assaltada! – a menina explica com indignação, ainda aos gritos. Decerto pensou “essa tonta não sabe o que significa estuprada”.
– Que coisa, né, filhinha...
– Mãe, me ajuda! (aos soluços)
– Tá bom, fia. Eu vou te ajudar. Mas antes me diz uma coisa...
– ...
– Como é que você chegou no Rio tão rápido?
Ouço murmúrios e cochichos. Uma voz de homem vem ao telefone:
– Dá pra ver aí de onde tá ligando, é?
– Dá.... (respondo como quem previne, não como quem concorda)
– Mas é residência, aí?
– É... (mesmo tom)
– Então como que dá pra ver?
– Dá. (Desta vez, em tom de quem diz “ué, você não sabe?”. Eu poderia acrescentar “em que mundo você vive?” ou algum epíteto: “Dá, seu panaca”. Mas pra quê?)
– Ah, tudo bem. Vou ligar pra outro número. Toda noite eu pego alguém, mesmo...
Pega, é? Fico pensando... quem é que ainda cai nessa?
Isso foi há um mês.
Ontem, de novo. Só que a ligação foi à tarde, a cobrar e a voz aterrorizada desta vez era a de um rapaz.
– Mãe, me pegaram!
– Já era tempo, né, filho...! Pegaram todos os seus amigos, eu tava começando a ficar preocupada com você! (voz risonha)
Gargalhada bem humorada do outro lado.
– Valeu...
E clic. Certamente também partiu pra outra... e também, certamente, cáspite, toda tarde pega alguém...
Avisar à polícia? Rá! Já tentei. E isso ainda no século passado, quando ninguém ouvira falar nesse tipo de golpe. Não se interessaram por saber o número do ligador, embora a conversa tenha sido bem mais convincente – não que tenha me convencido –, embora não fosse um celular e embora fosse de São Paulo mesmo.
2 comentários:
ótimo.
bem escrito e bem sacado, adorei o tom ironico da narradora.
É incrível, mas ainda tem gente que cai no golpe mais falado no Brasil. É incrível como até hoje a polícia ainda não descobriu metodologia para fazer com os bandidos aquilo que eles dizem fazer com suas alegadas vítimas.
Quando recebi o “meu” telefonema interurbano residencial a cobrar ( tenho identificador em casa) eu também já estava prevenido e além disso a minha filha estava na minha frente.
- Pai... eles me pegaram... - ouvi a voz feminina e chorosa.
Respondi: De novo filha? Pô, agora é toda semana? Com quem você anda saindo? Esse pessoal não vale nada!
Passaram o telefone para uma voz masculina ameaçadora.
- Seqüestramos a sua filha...
Eu interrompi a voz.
- Oquei seu babaca, pode ficar com essa vagabunda, ela não vale nada, faça o que você quiser. Num quero ela de volta não.
Ouvi uma risada antes do marginal desligar.
Eu não achei nada engraçado!
Lamentavelmente continuam aterrorizando com esses telefonemas.
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