domingo, 6 de julho de 2008

Penosa Paixão


Era uma vez Jorge Ferrão, um indivíduo da espécie dita humana, do tipo tremendamente malvisto por ser afeito àquilo que virou moda execrar à boca grande: macheza. Sim, um espécime macho da espécie que não mais admitia o uso público e notório de tal designativo, relegado às distantes e jecevaladanianas décadas de setenta e oitenta. O mundo, virado do avesso como estava, à vista de tão hedionda aberração, não tardou a virar-lhe a cara, as costas e, por vezes, a lançar torpedos escarratórios ao chão à sua passagem. Não que o mundo dotado fosse de cara, costas e sistema produtor de catarro, já que aqui me refiro a seus ilustres, preeminentes, ínclitos, conspícuos e - por que não dizer? - nobilíssimos habitantes, defensores ferrenhos dos valores basilares da moral, dos bons costumes e, em especial, do que se convencionou chamar de "o politicamente correto" ou "A Nova Ordem". O fato é que Jorge Ferrão, ou apenas Ferrão ou Ferrabrás, como era mais conhecido, era macho até a raiz dos cabelos, macho à moda antiga, como gostava de alardear quando degustava seus pés de galinha regados a cachaça no Bar do Tião, cabeça-de-bode cuja freguesia era composta basicamente pelos integrantes da classe "ralé", também denominados párias, indivíduos considerados "lixo irreciclável" pela classe dominante: a "magna" ou os neoaristocratas. Jorge não estava nem aí nem aqui nem acolá: coçava o saco, visivelmente e despudoradamente, a cada dois minutos. Via uma mulher atraente, mandava logo um "gostosa!". Brigava por qualquer motivo com qualquer um. Ria-se e pilheriava, troçando dos que repreendiam seu comportamento com palavras ou olhares reprovadores. Referia-se a eles como os "BBB" - bando de babacas boçais. Jorge "Ferrabrás" Ferrão era o último dos machões do século XXI.
Mas o que poucos sabiam é que Ferrão, lá no fundo, nos recônditos penumbrosos e secretíssimos de sua alma-espírito, escondia algo que poria todo seu auto-cultivado, auto-cultuado e auto-estimado prestígio a perder: apreciava Bossa Nova. É isso aí: Jorge, o Ferrabrás, era fã de Vinícius, Jobim, João Gilberto e Cia. Mandara forrar as paredes de seu quarto com uma grossa camada de cortiça para não correr o risco de ser flagrado por algum vizinho mexeriqueiro enquanto imerso estivesse em seu musical e muito particular êxtase. Jorge era um paradoxo ambulante. Jorge, indubitavelmente, e a despeito das opiniões contrárias, era humano, bastante humano.
Certo dia, Jorge caminhava a passos largos com destino ao retromalfalado botequim, quando deparou-se, numa curva da estrada, com aquela que seria a razão de sua perdição: a galinha. Sua visão turvou-se, sua face enrubesceu-se, seu corpo acalorou-se, seu coração palpitou-se: o que fora não mais era, era a mais nova vítima da frechada do Cupido. Lá estava ela, linda, deslumbrante, com seu ar altivo, sua crista carnuda encarnada, suas belas penas negras-brilhantes, seu pequeno bico amarelo. Jorge estava apaixonado. Apressuradamente, tratou de arrebatar e levar para sua casa a nova e penosa dona de seu coração. Deu-lhe o milho mais caro que achou no mercado, a melhor água mineral, trocou os travesseiros de penas por outros, sintéticos. Chamou-a Efigênia – gostava desse nome e, ao que parece, ela também gostou pois cacarejou e olhou para Jorge. Tratou-a como uma deusa, uma rainha, mas não fizeram sexo. Tinha receio de estuporá-la considerando as desiguais dimensões de seus órgãos genitais. Jorge, enfim, era um homem plenamente feliz, feliz e transformado: não mais coçava o saco, não mais cantava as mulheres na rua, não mais freqüentava o Bar do Tião. Vivia para Efigênia, para agradar Efigênia, para amar Efigênia.
Entretanto (sempre tem que ter um entretanto, contudo, mas, todavia ou porém), alheia a todos os mimos e agrados do (pensava ele) amado, certo dia anuvioso-chuviscoso, Efigênia bateu asas e voou não se sabe para onde nem por quê. Perplexo, Ferrão a procurou em todos os cômodos, em todos os cantos e recantos internos e externos da casa. Nada de Efigênia. Ela partira, fugira, escafedera-se. “Aquela ingrata. Depois de tudo que fiz por ela, depois de tudo que vivemos juntos...” Ferrabrás pensou em traição, seqüestro, estupro, assassinato, abdução, migração e, por fim, conformou-se com a hipótese do nada simples, nada puro e todo doloroso abandono. Já a refletir viagens de vira-e-revira-mundo e idéias suicidas, eis que ouve um ruflar de asas advindo da janela da sala. Volveu os olhos na direção do ruído e foi tomado novamente pelo êxtase, desta feita, mais intenso: lá estava sua amada, adorada e idolatrada Efigênia, em carne, ossos, bico e penas. Correu a abraça-la, quase esquecendo-se da fragilidade do corpo da galinácea. “Meu amor, você voltou! Onde você estava, por onde andou, digo, voou?” – dava beijos e mais beijos. A galinha retrucou com regulares e breves cacarejares. Jorge não pensou, agiu: trancou todas as janelas e portas, depositou suavemente Efigênia na cama, acendeu o fogão e colocou o caldeirão com água para ferver. Quando a água borbulhou e começou a evaporar, com lágrimas nos olhos, pegou delicadamente Efigênia, olhou fixamente para seus olhos ariscos e disse: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim.” Afundou-a no caldeirão e tampou, segurando com toda a força, as lágrimas a gotejar e vaporizar tamborilando sobre a tampa. A agitação no interior da grande panela foi breve. Foi o melhor jantar da vida de Jorge Ferrão, jantar à luz de velas. Doravante, ele e sua amada Efigênia jamais se separariam novamente, estavam juntos, fundidos, seriam um só, eternamente.

Carlos Cruz - 23/05/2008