sábado, 6 de dezembro de 2008

Eterno Retorno

Ano 2536. Episcípedes, na segurança de sua casa-redoma feita de vidro
ultra-resistente, observa a chuva ácida. A paisagem lá fora é
desoladora: só negrume, só fumaça,só morte. Só. Episcípedes
sentia-se aflitivamente só. Tomou outra dose de alcahol, outra
cápsula de ilusionithium. Drogas permitidas pelo Estado. Controladas
pelo Estado. Estado que controlava os cidadãos. Cidadãos que
consumiam as drogas controladas pelo Estado para que não perdessem o
controle de si. Episcípedes sentiu o formigamento nas mãos, o suave
torpor, a leveza do corpo. As substâncias faziam efeito, cumpriam seu
papel no organograma estatal. A paisagem lá fora transmutou-se. O
árido tornou-se fértil. O negro tornou-se verde. O morto reviveu.
Episcípedes viajou. Para dentro, para longe, para trás.

Ano 1210. Episcípedes era homem. Tinha a cabeça raspada em forma de
halo, trajava uma túnica grossa de lã, amarrada por uma corda na
cintura, e sandálias. A corda tinha três nós. Os nós tinham nomes.
Pobreza, Obediência e Castidade. Ao seu redor, animais, muitos.
Parecia que todos os animais da floresta tinham vindo lhe fazer
companhia. Episcípedes estava feliz, muito feliz. O estrondo da
trovoada fez os animais debandarem. Episcípedes correu atrás deles.
Não queria que aquele momento pleno de felicidade terminasse.
Chocou-se contra algo invisível. Uma barreira invisível. A chuva
desabou. Episcípedes, desesperado, viu os animais contorcerem-se,
dissolverem-se, transformarem-se em uma pasta de carne fumegante. A
relva verde ardia sem fogo. Fumaça. Muita fumaça. O verde tornava-se
negro. Episcípedes tateou a esmo a barreira invisível. Encontrou um
botão. Premiu. Uma porta invisível abriu-se na parede invisível.
Episcípedes transpôs. Saiu. Correu sob a chuva. Gotas ácidas
penetrando sua carne. Agulhas de fogo líquido. Queimando. Súbito, seu
corpo em brasas planou no ar. Levitou. Braços invisíveis
arremessaram-no violentamente contra a madeira. O madeiro. Grossos
pregos cravaram-se em suas mãos e pés. Cravos. Coroa de espinhos na
cabeça. Estigmas. Gotas ácidas. Queimando. Derretendo. Martirizando o
mártir. O homem humano. Super-humano. Não era Episcípedes. Não era
Francisco. Era a massa. A massa de carne sem vida. Morto. Estava morto.

Ano 3023. Episcípedes era uma célula nervosa implantada em um chip. Um
chip implantado em um andróide. Não sentia. Não pensava. Não amava.
Era só uma célula. Só um chip. Só um andróide. Só. Sempre só.
Operário na usina de reciclagem de lixo, encontrou, certa vez, uma
gravura antiga dentro de um livro antigo: Uma cobra engolindo a
própria cauda. Algo dentro de si reagiu. Talvez uma mitocôndria
anarquista. Familiaridade. A gravura era familiar. Aquela vaga
lembrança foi o foco inicial daquela que ficou conhecida como a
"Revolução dos Humanóides". Milhões de andróides foram
neutralizados. Episcípedes, crucificado na cruz de metal, exposto
durante meses como um lembrete. Depois, desmembrado, esquartejado e,
por fim, dissolvido em ácido. Era o fim de outro ciclo. Outros viriam.
A cobra engoliria o próprio rabo. Sempre.

Carlos Cruz - 20/11/2007

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