sábado, 10 de janeiro de 2009

Autópsia Psicológica





Havia um lugar em que eu queria estar agora, um ponto no fundo do quintal da casa em que eu cresci, um lugar aonde eu ia para chorar sem que me vissem (odeio que me vejam chorar) ou apenas para sentir o vento.

Lá ficava uma mangueira. Era mais nova que as outras árvores e na luta por sol havia se tornado a mais alta. Quase não tinha galhos laterais, era longilínea e sua copa se erguia acima de todas as outras. Só eu conseguia escalar aquela árvore, por isso a considerava minha. Era no alto dela que eu gostaria de estar. Escondida entre as folhas, esquecida do tempo. Infelizmente isso não seria possível já que a árvore foi cortada e no lugar da casa existe agora um prédio feio. Moro em outra cidade, outro tempo, outro corpo e não posso me esconder... Nem sempre.

Era de manhã quando ele ligou. Confesso que pensei em não atender. Sabia quem era e achava que sabia a razão do chamado. Estava errada, não sabia.

“Alô. É você? Tem alguma idéia de que horas são?”

“Cala a boca e escuta.”

Levei um susto enorme com o tom de urgência na voz. Um choque que me fez obedecer e suspender as reclamações.

“Presta atenção, meu amor. Eu decidi ir embora.”

“Como assim?”

“Fica calada e me escuta. Não é você... não tem nada errado com você OK... Não admito que pense assim depois... não esquece... EU DECIDI.”

“Você não tá falando sério.”

“Presta atenção! EU QUERO IR EMBORA E NINGUÉM TEM NADA COM ISSO!”Ele oscilava entre o sussurro e um tom próximo do grito. “Mandei um bilhete pro resto da família... mas com você eu queria falar... queria te ouvir antes...”

“Pára com isso! Onde você tá? Eu vou te buscar...”

Podia ouvir o vento em meio a um silêncio absurdo, tudo parado como se nada mais importasse além da voz dele no telefone. Depois de uma longa pausa, ele suspirou.

“Eu sei que viria, mas não dessa vez... Obrigada, anjo... eu quero ir embora.”

“Por favor, só me diz onde diabos você está e fica falando comigo, não desliga!”, eu disse pegando as chaves do carro e correndo para a garagem. O silêncio dele me assustando cada vez mais. “Fala comigo!”

“Só queria que soubesse... Não é sua culpa... um beijo, anjo.”

Fiquei algum tempo olhando para a chave inútil. A chuva começou naquela hora.

Chove enquanto eu fico aqui cercada por cartas, bilhetes, fotos e livros que explicam o que eu já sabia. Desisto de ler.

Assisto a cidade afundar numa tarde aquosa. Penso vagamente em andar na tempestade. Olho da janela minha rua transformada num rio pardacento e desisto disso, também.

Minhas idéias giram, rodopiam sem parar, os pensamentos embaraçam seus longos tentáculos e acabo por não pensar coerentemente. O céu ali, à esquerda do poente, abriu-se num magnífico azul que se expande. Sobre as árvores da praça surge um arco-íris e eu me escondo nele. Vento e chuva entram pela janela aberta. E se eu fechar os olhos posso ver a árvore morta dos meus devaneios.



* Tela: Miranda, The Tempest de John Williams

2 comentários:

Jessiely Soares disse...

O que eu posso comentar? É um texto que se, eu o tivesse feito, não me faria viajar tanto.

A casa antiga, a árvore da qual se sente falta, as fantasias que vão embora. A partida, a saudade.

O crescimento. E a falta de um lugar pra se esconder. Perder esse lugar pra se esconder é como perder um pouco da própria identidade.

Belo texto, Rosa. Eu já o tinha lido, relê-lo me fez gostar ainda mais.

Beijos!

Deveras disse...

Lindo texto. Já o conhecia de outras paragens, o que não diminui o apreço... Há arvores mortas em todos nós, humanos e falhos.

ficanapaz