sábado, 5 de setembro de 2009

Cômoda Luiz XV


Cômoda Luiz XV

As gavetas entreabertas do móvel denunciavam o ciclo de sua condição primária, o caos. Soube desde menina que não era como as outras, bem que tentou se adaptar, mas também descobriu muito cedo como era agradável descobrir-se fora daqueles compartimentos organizados.
Não conhecia Schopenhauer, mas já não dava valor aos melhores colégios, nem aos bons professores, ou aos bons modos, doou-se sempre à condição de ser contraditória. Coordenava bem seus movimentos, mas não tão bem as palavras quando estava cheia de dúvidas e de ódio. Por consequência de suas confusões existenciais foi considerada a louca.
Julgou engraçado observar os outros e constatar a ignorância impressa em cada gesto de punição ou de tentativas de controle e ajuste que tomavam em relação ao seu comportamento estranho.
Na visão de Cecília as pessoas idolatravam a propriedade, queriam ter, comandar, conduzir a vida e as escolhas dos outros, baseadas apenas em suas experiências e peculiares visões de mundo.
Ela preferiu ser, abriu mão de tudo que teve e saiu pelo mundo, errante. E naqueles dias acreditava que não era pena que os outros tinham dela e sim inveja. Desejavam ter a coragem que teve, de abandonar tudo e de ser chamada de covarde sem sentir nenhum remorso ou culpa.
Aprendeu a rir chorando, pois era contrariar demais ser sem limites e ela tinha os seus próprios muros. Jogou-se contra eles com tanta força que agora se sentia espório daquilo que mais odiava. Estava insegura e sentia vontade de chorar quão grande era sua decepção consigo.
Era evidente que estava mais sozinha que nunca, que se impôs o fardo do ser para vivenciar cada rusga de si como se fosse um desmembrar social, um investimento em suas durezas, enquanto o mundo se fingia afável.
Não sabia se vencedora ou derrotada, mas em batalhas ideológicas não abria mão de sua filosofia. Perguntava-se ali, sentada no chão, de frente para o móvel, imóvel. Em quantas gavetas estaria guardado o seu desatino?
Sim, aquela cômoda Luiz XV guardava na gaveta superior à da esquerda, os seus desatinos, algumas meias-finas velhas e suas calcinhas adolescentes. Na da direita, agora vazia, guardara todas as dores de sua carne e os diários de infância, há muito tempo queimados. Nas inferiores, de cima para baixo: na primeira os sons de todos os desesperos e dias de chuva que viveu; na segunda as crenças que perdera durante toda a vida; e na terceira a realidade, mas essa gaveta estava trancada com chave!

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