sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Livre Arbítrio




Um despertar de raiva. Há vários jeitos de se acordar, mas o despertar raivoso realmente preocupava. Sempre descambava em merda. Em dias destes, já tinha largado ótimos empregos, terminado bons namoros, destratado péssimas amantes, mudado toda uma vida. Só um fato não mudava. Em dias como este, sempre fazia merda. A raiva incontida, trotoava ligeira sob a fronte, esperando um comentário menos inteligente, uma brincadeira maldosa, um esboço de pensamento para lançar−se mundo afora, represada que era normalmente, disfarçada em um sorriso cortês e gentil; em certos aspectos ainda vivia orientado por manuais de lanchonetes fast−food. Um despertar de raiva era tudo que a raiva podia querer. Concedia condicional para o mal aprisionado dentro d´alma, inconcebível, diante algumas opiniões, inexistente perante outras, detestável e esquecível para quem já o havia presenciado. Janis deslizava pelo ar, ordenando tentar (just a litle bit harder), então era só amar, amar, amar alguém. Quem?
A raiva, agora ódio, não sabia responder. Então era isso: o tempo passava continuamente e as possibilidades iam se esgotando. Quanto mais tempo, menos variáveis. Quanto mais experiência, menos lugares para aplicá−la. Quanto mais ódio, menos pessoas para direcioná−lo; o afastamento da humanidade, pelo menos na ótica das relações interpessoais, granjeia adeptos diariamente. Séculos de está bom assim, tá certo, eu concordo e não se preocupe, costumam se incrustar n´alma, se avolumando e enegrecendo humores, causando desconforto e rancores. Rancores estes alimentados diariamente com sucrilhos, adolescentes fortes que se tornam adultos vigorosos, tomam corpo e exigem espaço: pronto, está se formando mais um psicopata.
Pensamentos que ecoam em um cérebro rápido e celerado, dando voltas cada vez mais aceleradas sem pit−stops, levam passos pausados para lojas de armas. Dedos longos indicam, os olhos observam e a boca matraqueia qualidades do objeto procurado. Repetição, eficácia, penetração, alcance e calibre são estudados. Por sugestão do vendedor, que fez vista grossa pela falta do porte de arma, ao ver as notas dispostas em série, a escolha do mais caro: se já tivesse munição, começaria por ali. Um teste, por assim dizer. Municia-se falando em caçada, indiferente à indiferença pela mentira, abre a mochila e se vai. O vendedor vai até a porta da loja e dá um sorriso satisfeito.
Uma praça de alimentação de shopping−center, dois ovos maltine e cinco casquinhas depois, observava com frieza o ambiente climatizado. A mão isolada dentro da capanga, esperando trêmula pelo instante, uma faísca que falta surgir. Uma vontade de acabar com tudo que restava ser saciada. Um momento de revide no presente, um retraçar de metas estipuladas em vidas que passeiam paralelamente alheias. O gosto do poder de comandar destinos, na verdade, de destruir sonhos, enterrar esperanças e silenciar vozes. O levantar estático, disposição suicida de não voltar atrás, espera começar pelos que sorriem mais, estes que debocham das dores e dos amores, ao som do mar e à luz do céu profundo, fulguram... Figuram colunas sociais e escândalos nacionais, sob o manto mesquinho e avarento da impunidade; por que todos não somos perdoados? Por que a condescendência atinge somente alguns? Por que a vida nega favores justamente para aqueles que mais deles necessitam? Doze balas iriam dar as respostas que procurava? Talvez não, mas havia trago vários pentes sobressalentes; continuaria seus questionamentos até achar uma resposta razoável. Ou uma morte rápida...
Deu um passo adiante, já tirava a arma de dentro da mochila quando esbarrou em uma senhora franzina que trabalhava na limpeza. Levava uma bandeja repleta de copos de papel e restos de sanduíche que espatifaram−se no chão, causando uma bagunça e um barulho não observados pelos comensais que continuavam a rir, beber, conversar, comer, mentir e opinar sem darem a mínima atenção ao que acabara de acontecer. Ele abaixou timidamente, desculpando−se pelo acidente. A velha, ajoelhada no piso, deu um sorriso amargo e sincero, confirmado pelo olhar cansado e castanho de muitos anos de luta:
− Tudo bem, meu filho! − Aquelas palavras causaram tanto impacto em sua mente febril, que ele teve que dominar−se para que uma onda de emoção, vinda não se sabe de onde, o dominasse. Acocorou−se ao lado da velha, pensava no que faria, afinal aquela senhora de joelhos em sua frente, não obstante todos os problemas, as dificuldades, humilhações, desrespeitos, continuava a manter viva a chama indomada da esperança em dias melhores; de lutar a cada dia uma batalha que ele já julgava perdida e por isso decidira ir ali, com aquele intento assassino na cabeça...Sentiu que uma onda de emoção percorria seu corpo, coisa que até então não havia lhe ocorrido. Parados naquele instante, pode ver que ela olhava com tristeza para a arma que segurava
− Isso resolve algo? – apontou para os indiferentes que os cercavam e arrematou – Há algum dentre eles que é menor do que nós, para que possamos tomar as mesmas atitudes que sempre tomam? Em quê melhoramos e onde chegaremos?
Final
Fechando a mochila com um gesto rápido, precipitou−se para a saída. Ao passar por uma lata de lixo jogou o invólucro recheado de morte e pegou o rumo de casa. Por−se−ia a escrever, esta noite. Sua loucura sempre apaziguava quando escrevia.
O sol caia lento no horizonte quando dois personagens se encontraram no estacionamento do centro de compras:
− Você trapaceou – acusava o rapaz – Interferiu nas escolhas quando apareceu como uma pobre coitada que levava o mundo nas costas.
− Pensa que não sabemos que você ajudou na aquisição da arma?
− Errr...Hehehe. Continuam de olho em tudo, hein? Ora, no meu caso, trapacear não é novidade.
− Entendemos isso. Por isso a Direção optou pela segunda chance para o garoto repensar o que estava fazendo.
− E o tal do livre arbítrio? Vocês são historinha mesmo. Se há uma coisa que não suporto é quando burlam as próprias regras. Elas se aplicam a mim? Lógico que não, pois se aplicasse não estaria lá embaixo, na segunda divisão! – Saiu gesticuladamente esbravejando, sumindo em uma nuvem de enxofre.
Final 2

Jogando a mochila nas costas, com um gesto rápido, levantou−se e apontou a arma para a primeira mesa, no rosto um olhar de ódio, olhava as vítimas, que ainda não haviam se dado conto do que ocorreria... Premia já o gatilho com um gosto de sangue na boca, quando um vulto branco, que podia jurar ser uma imensa asa de pombo, atingiu−o de lado, lançando seu corpo no vácuo... Despencou da praça de alimentação, no terceiro piso, vindo a se estabacar sobre a feirinha de produtos esotéricos; morreu em cima dos cristais que prometiam cura...
O sol caia lento no horizonte quando dois personagens se encontraram no estacionamento do centro de compras:
− Mas... Mas que merda foi aquela? – acusava o rapaz, colérico.
− Um espirro. Pedimos sinceras desculpas.
− Isso não vale! Ela interferiu no prosseguimento das coisas! Eu quero uma contraprova! Marmelada!
− Ora, ora... Se não era você quem ajudou na aquisição da arma.
− Isso é, hum... Um detalhe. Suas regras não se assentam muito para mim. Mas eles... Eles ainda têm o livre arbítrio. E vocês não respeitaram isso!
− Quem disse não respeitamos? O que aconteceu foi um lapso e nossa representante já foi inclusive chamada pela Direção, para prestar esclarecimentos sobre o acontecido. Provavelmente estará sob suspensão até novas ordens.
− Sei, sei...
− Regra nº 76473/E, interferência no andamento natural do Destino.
− Vem cá, você acha que ela vai ser punida?
− Olha, pra te dizer a verdade...Vamos ter que fazer uma CPI.

Final 3

Deixando a mochila cair ao lado, olhou em redor as pessoas que riam e viviam.. Sentiu o peso duro e frio da própria existência, sentiu que a culpa não era do mundo, da vida ou das pessoas... A culpa sempre fora sua, de sua incompetência de gerir a própria existência, sua covardia em assumir riscos e seu medo de viver. A culpa não era daquelas pessoas que alegres viviam; um ser repugnante como ele não merecia continuar respirando o mesmo ar das outras pessoas.
Em um gesto rápido colocou o cano da arma na boca e premiu o gatilho. A explosão do cartucho aconteceu imediatamente... As bochechas ainda se estufavam pela expansão do ar, sendo empurrado pela bala que atravessava o cano, quando ressoou alto, congelando o tempo e os movimentos: − PODE PARAR POR AÍ!
− O que você está querendo fazer? Mexer no contínuo tempo da vida? É total e completamente fora das regras! – a faxineira, junto ao recém chegado, eram os únicos que se moviam no espaço estático.
− Que regra o quê... Peguei vocês manipulando tudo, aqui e agora, sem desculpa nenhuma!
− Tá, quer dizer que você não entregou a arma nas mãos dele.
− Isso não vêm ao caso. O que importa é que isso ia acontecer mesmo. Ele ia sacar a arma e distribuir bala pra tudo quanto é lado... O bonde hoje ia descer cheio. E agora, por sua causa, tão querendo que eu leve somente este banana, isso eu não aceito!
− E quem disse que ele iria mesmo disparar contra os outros?
− Olha aqui, página 9472 da vida do fulano! – Apontou um calhamaço de papel.
− Peraí, como você teve acesso ao Roteiro da Vida?
− Er... Ah, isso? Nada não.
− Sabia que é uma falta gravíssima ter acesso a “dados não acontecidos”?
− Qualé...Suas regras não valem para mim. Mas alto lá! Me responda uma coisa: se vocês sabem que existe um “Roteiro da Vida”, com “dados não acontecidos”, como ainda estufam o peito para dizer que estes coitados possuem “livre arbítrio”? Como vão escolher se tudo já está escrito?
− Bom, é quer dizer... – um telefone toca− Só um momento... Sim Senhor, ok... Vamos resolver tudo. Certo, será tudo feito para sanar isso. Hã? Tá sim... Aqui do lado. Toma... Não queria explicações?
− Não... Deixa pra lá... Nem tava me ligando tanto assim... Podexá que levo esse pôrquera mesmo... Diz que eu já fui...
− Ele não quer lhe atender... Tá... Já esperava por isso, sei... Ok, resolvo tudo por aqui... É, limpeza parece que virou minha área mesmo, hehehe. Já sei o que fazer...



LIVRE ARBÍTRIO


Um despertar de amor. Há vários jeitos de se acordar, mas o despertar amoroso realmente deixava tudo lindo. Sempre descambava em coisas boas. Em dias destes, já tinha arranjado ótimos empregos, começado bons namoros, encontrado ótimas amantes, mudado para melhor seu futuro. Só um fato não mudava. Em dias como este, sempre fazia coisas maravilhosas. Ele sorriu para o céu e saiu confiante pela rua. Era muito bom sentir que tinha total controle de sua vida...






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