quinta-feira, 1 de abril de 2010

A semente de Aton


Desta vez, foi diferente. Ele cumpriu sua missão e regataria a humanidade. Os problemas foram puramente técnicos: construir uma cidade, a capital, no interior, durantes apenas um ciclo de governo. Uma tarefa faraônica, disseram. Ele a achou mais fácil.
O motorista enrolou a erva no cigarro  e o acendeu. Deu uma longa carburada e depois passou para o chefe, no banco de trás. Voltou para a estrada, ainda travando a fumaça nos pulmões.
Antes, os sacerdotes acharam que ele queria construir a cidade para concentrar em torno de si os poderes políticos. Como cada deus dominava uma cidade diferente, o poder estava diluído nas mãos de vários líderes espirituais. A cidade em homenagem ao deus Aton, que ele, do alto de seus direitos e deveres como Faraó, anunciou como deus-único, seria o centro administrativo, social e, obviamente, religioso. É claro que isso modificaria a estrutura vigente; convergindo as esferas de forças para o mesmo local, ele, o chefe-supremo, absorveria todo o globo de poder. Não foi à toa que escolheu o disco solar para representar o deus, era a manifestação do simbolismo, tão importante para seu povo.
Akhetaton, a cidade, foi projetada para ser a capital do mais resplandecente trono da Terra. O clero bem que tentou impedir, queriam manter os próprios privilégios, porém Akhenaton soube contornar as adversidades. Seu objetivo, verdadeiro e sincero, o fortalecia.
A fumaça adocicada serpenteou sobre o rosto do ilustre homem confortavelmente aconchegado no banco de trás do Opala. Ele ria interiormente, sabia que se descobrissem este seu prazer secreto, seria a execração pública absoluta. Fazia tempo que não fumava, a última vez foi após cumprir a missão.
A semente de cânhamo poderia resistir durante anos, séculos, até, se permanecesse bem acondicionada na ânfora de barro. Akhenaton enterrou pessoalmente várias pequenas ânforas por toda a cidade durante sua construção. Ainda jovem, havia evocado Aton, o deus da ciência no antigo panteão egípcio. O ritual era fumar a flor de uma determinada erva. Cada pessoa tinha sensações próprias. Ele viu Aton, o próprio deus, no céu, travestido com raios de fogo, no formato do Sol.
Naquele dia, à margem do Nilo, ao lado do velho e seco pé da erva, de onde ele colheu a oferenda e a fumou enrolada numa fina lâmina de papiro, disse, o deus, que ele cumpriria uma missão sagrada. Deveria construir a cidade onde nasceria o Salvador, o próprio filho do deus. Lá, a criança aprenderia toda a filosofia para saber conduzir o homem à evolução. Em caso de insucesso, a civilização pereceria.
Lembrou quando encontrou a velha ânfora lacrada no mercado do Cairo. Adorava as viagens internacionais a serviço do governo brasileiro. Qual não foi a surpresa ao descobrir as  sementes quando abriu o lacre! Só foi menor que sua emoção quando germinaram. Era uma descoberta científica da maior importância, iria relatar o fato nas revistas médicas, sua profissão. Sabendo dos efeitos perturbadores do cânhamo que cresceu das pequenas mudas, pesquisou e descobriu que deveria fumar as flores. Resolveu, então, na decisão que mudou sua vida, aplicar em si os efeitos para ser capaz de relatar com perfeição quais as sensações geradas pela planta.
Assustado com a revelação do deus, Akhenaton traçou um plano para cumprir efetivamente sua missão. Percebeu que precisaria do apoio de todo o estado para construir a cidade que viu no sonho. Mesmo sendo o senhor do Egito, dividia os poderes religiosos com vários sacerdotes tão adorados quanto ele próprio. Ardilosamente, iniciou atacando Tebas e todos os seguidores de Amon, o deus mais poderoso do panteão. Justificou explicando sobre Aton ser o único e verdadeiro deus, era a maneira mais fácil de enfraquecer o clero e alcançar o que desejava.
Tudo correu bem, até a distribuição das ânforas, seu plano alternativo caso não cumprisse a missão. A cidade cresceu e ficou linda como Nefertiti, sua esposa. Com ela teve seis filhos. Morreu, velho, acreditando ter concretizado sua sagrada obrigação. Tut-ankh-Aton, o filho que ascendeu ao trono, viu, antes do fim da vida, o esfacelamento do reino por conta da descoberta de rotas comerciais fora do Nilo.
Tragou e prendeu a fumaça no pulmão. Lentamente sentiu os efeitos da erva. A névoa de calma e compreensão o cobriu, fazendo-o ouvir a voz de deus. Ele imaginava ser deus pois era católico, o que ele escutava eram sábios conhecimentos que pareciam vir lá do fundo de sua alma. Contavam sobre vidas passadas, missões sagradas, deuses e faraós.
Esconder as ânforas com sementes por toda a cidade foi a grande idéia de Akhenaton. Imaginava que algum descendente pudesse encontrá-las, fumar a erva e receber a mesma incumbência do deus, por serem parentes. Os deuses eram muito fieis. Conhecia a volubilidade política do seu reino, sabia que sua cidade poderia não durar o tempo necessário. Nunca imaginou, porém, que a civilização corresse tanto risco de perecer pois Akhetaton foi esquecida poucas gerações após sua fundação. O salvador, Jesus, acabaria nascendo milênios depois, em Nazaré, uma vila miserável, dominada pela simplória e fundamentalista seita judia. A criação do jovem acabou afetada pelos errôneos conceitos do seu ambiente. Se Akhetaton ainda existisse, o destino do salvador teria sido pleno.
Ele olhou pela janela. A Via Dutra estava vazia, já era tarde. Ele viajava do Rio de Janeiro para São Paulo. As quatro horas de carro seriam suficientes para fumar o baseado. Desta vez, responderia à voz do criador. Desde que descobrira sobre Akhenaton, durante a viagem ao Egito como Deputado, Juscelino Kubitschek ficara intrigado com a missão de construir uma cidade-modelo que fosse capaz de educar o filho de deus como líder da humanidade.
Quando fumou pela primeira vez, imediatamente entendeu que o plano alternativo de Akhenaton seria a última esperança da civilização. Ele próprio era um descendente do Faraó, talvez sua reencarnação, pois recebera a mesma incumbência. Significava que ainda haveria outra oportunidade para o nascimento do salvador acontecer no lugar correto, a cidade que seria o berço da nova civilização.
Olhou pelo pára-brisa e viu um carro vindo em sua direção. Não se importou, estava relaxado por conta da erva, da satisfação da missão cumprida, de saber que finalmente resgataria a humanidade. A voz de deus retumbou em sua cabeça. Respondeu, num discurso claro e fluente.
- Desta vez, foi diferente. Brasília há de durar até o nascimento do novo salvador.

3 comentários:

Paulo Laurindo disse...

Demais, cara! Verdadeira função do poeta: criar mitologia!

Mensageiro Obscuro disse...

Esse texto é bem interessante, como bem sabe eu gosto de ler e escrever sobre o Egito antigo. Pelo que li você estudou legal sobre a religião egípcia, apesar de que algumas passagens poderiam ser mais aprofundadas, mas não é tão necessário citar coisas mais complexas. O bom desse texto é um comparativo entre o Egito antigo e o Brasil da era Kubistschek, assim como a questão da política e da existência de um salvador para cada época.

Giovani Iemini disse...

hehehe, sim, mitologia, tô tentando completar a história de brasília com a egípcia.
valeus a leitura.