sábado, 30 de abril de 2011

Convidado Elenilson Nascimento

Vocês estão lendo agora as linhas tortas de um cara que já tem trinta e uns anos porque não teve coragem de matar-se aos quinze, por isso arrasta-se por esse mundo louco, com família ausente, sem Deus presente, sem futuro, sem amor; questionando todas as atrocidades dessa sociedade excludente e negociante; odiando Gagas, Fiuks, Restats e o “foge fode” da Mulher-Maravilha, mas amando jazz, Beethoven, Sade, Dostoievsky, Nelson Rodrigues; aceitando Marx; influenciando-se pela barata de Kafka, Sá-Carneiro, Pessoa com o seu “inexorável céu aceso”, Guimarães, Graciliano, Mário de Andrade, Jorge Amado, Drummond, Vinícius; duvidando de toda a história mal contada sobre Judas, bebendo suco de b***** e despejando mingau de p****, e recomendando à juventude ser menos alienada e idiota e ser também contra os policiamentos interiores e exteriores, e, sobretudo, achando que o cristianismo deveria suicidar-se.

Em seus mais recônditos sonhos obscuros ele tinha medo e vergonha de falar que não queria ter com quem para quem se dar. Escondia isso a todo custo. Não falava, não escrevia por e-mail e nem comentava com ninguém pelo Orkut. Fazia-se de forte. Fazia-se de destemido. Fazia-se de inteligente. Mas temia essa sensação como um borra botas. Temia gostar muito de alguém, pois não acreditava que aquela felicidade vendida nas propagandas de margarina poderia ser sua. Não confiava na família. Não confiava nos poucos amigos. Nunca se sentiu amado.
E ao lado do futuro-suposto-hipotético metrô de Salvador que, depois de mais de dez anos, ainda não havia ficado pronto, achava que também deveriam erguer um outro monumento imponente de inutilidade, com jardins suspensos, torres residenciais com apartamentos para os mais diversos estilos de vida, torres empresariais e uma escola 24 horas para atender os filhos dos privilegiados que não são loucos de saírem do lado de lá para correr riscos nas ruas fedidas da capital baiana, numa ode ao mundo da grana e da falta de amor, do lado de cá.
E nesse paraíso em construção, para marcar com ênfase o signo da riqueza, haveria também um shopping exclusivo de alto luxo, com grifes internacionais nunca antes aportadas na história da Bahia, e heliporto, para os pobres mortais estressados que não suportam mais carros e trânsito caótico da Rótula do Abacaxi. Uma metonímia. Mas ele achava que as coisas mais simples da vida não lhe pertenciam. E, no mais absurdo delírio, policiais militares travestidos de capitães do mato ou de capangas de Lampião, viriam roubá-las a qualquer instante. Ele já tinha os vira nas fotos do Museu de Arte, no Corredor da Vitória. Seus espectros desbotados e descolados das retinas formando um exército de sombras ensandecidas e sedentas de sede de sangue, como sanguessugas, queriam violentá-lo e em seguida devorá-lo. E agora todos eles já estavam ali no seu quarto quadrado cheio de livros velhos e empoeirados. Realmente, Deus é uma fraude!
Paredes não eram empecilhos para a manada armada cinzenta de insanos que havia chegado do Inferno para fazer justiça com as próprias mãos. “O paraíso não lhe pertence!” – gritava aquele que parecia ser ainda o mais nítido e vivo dos fantasmas, com jaleco e pó de giz nas mãos, apontando a arma tosca e enferrujada, mas sem dúvidas, capaz de ceifar mesmo os sonhos escondidos nos sonos mais profundos e obscuros dentro da sua cabeça, da mesma forma que a Vida já havia o feito, pois ele não acreditava em amores de estação nem em receituários perfeitos de livros de autoajuda. O máximo que poderia acontecer é ter o seu cérebro despedaçado com um tiro na cabeça.
E da mesma forma que a quase totalidade dos empreendimentos em Salvador que prometem distância da pobreza e dos riscos que ela representa é batizada com nomes de inspiração anglo saxã, francesa ou italiana, no máximo, ele via o que os outros não viam. Mentiras em comerciais! Profecias em jornais! E pulam nomes como Manhattan, Privilegge, Village, Square, Prime, Ville e que tais. E ele lá morando num apartamento de classe Z na Estrada das Barreiras rodeado de baratas, putas velhas e velhas putas.

Mas lá, do outro lado da cadeia alimentar, dentro desses verdadeiros parques de serviços de lazer e conforto, onde há “de um tudo” (*cinemas, shopping centers, escritórios, agora escolas, espaço gourmet, piscina, ou melhor, swimming pool, lounge), e o melhor de tudo: a total falta de necessidade de cruzar o portão de saída para encontrar essa gente maltrapilha que insiste em transitar por aí.

E sobre esse desejo crescente e endêmico de afastar-se dos pobres maltrapilha a qualquer custo, um dado primoroso: ele quando passa de carro pela Avenida Centenário após a reforma e acha “fofa” a pracinha construída ao longo de todo o canal de esgoto que há pouco corria a céu aberto, não se atrevia a pensar que a obra contava com o apoio massivo da parte rica da avenida. Alguns moradores dos amplos apartamentos de um dos lados da via estão putos da vida, certos de que, agora coberto, o ex-canal tornado praça bucólica se transformou mesmo foi numa ponte que encurtou o caminho para atrair os indesejáveis moradores do Calabar e do Alto das Pombas à outra margem do PIB, nas bandas da Graça.
Mas, em um único golpe acordou suado, gemendo, esperando o grito seco que não escapara da garganta. Abraçou o lado seco do travesseiro com tanta força e desespero, mesmo sabendo que a matéria-prima de que teciam o seu idílio era liquefeita e impossível de ser contida em um par de braços, em um par de penas, ou num cu. Ainda podia sentir as presenças indeléveis dos coriscos vesgos e dos jagunços mortos. Sabia que nada poderia demovê-los dos seus eternos destinos de justiceiros cegos e alienados, como evangélicos doutrinados por mercenários pedófilos. Mas preferiu sonhar de olhos abertos, abraçado ao seu antiherói de mangá, desenhado em tênues traços de nanquim numa estória vivida nos anos 80. E manteve-se assim até que a luz do dia lhe desse alguma garantia de que a brigada dos sertões tivesse dado ao menos uma trégua. Tudo em vão. Aos inconformados, resta correr para a incorporadora mais próxima, comprar um passaporte para um desses paraísos artificiais à prova de pobres e sair cantando o novo hino do axé: "Tchau/I have to go now", pois amores não existem. Amores são apenas gozos molhados em camas quentes. E o máximo de romantismo que ele ainda acreditava era de que um dia todos estariam mortos, pois a morte é o verdadeiro pacto romântico.

---

Elenilson Nascimento

Nenhum comentário: