Vocês estão
lendo agora as linhas tortas de um cara que já tem trinta e uns anos
porque não teve coragem de matar-se aos quinze, por isso arrasta-se por
esse mundo louco, com família ausente, sem Deus presente, sem futuro,
sem amor; questionando todas as atrocidades dessa sociedade excludente e
negociante; odiando Gagas, Fiuks, Restats e o “foge fode” da Mulher-Maravilha, mas amando jazz, Beethoven, Sade, Dostoievsky, Nelson Rodrigues; aceitando Marx; influenciando-se pela barata de Kafka, Sá-Carneiro, Pessoa com o seu “inexorável céu aceso”, Guimarães, Graciliano, Mário de Andrade, Jorge Amado, Drummond, Vinícius; duvidando de toda a história mal contada sobre Judas,
bebendo suco de b***** e despejando mingau de p****, e recomendando à
juventude ser menos alienada e idiota e ser também contra os
policiamentos interiores e exteriores, e, sobretudo, achando que o
cristianismo deveria suicidar-se.
Em
seus mais recônditos sonhos obscuros ele tinha medo e vergonha de
falar que não queria ter com quem para quem se dar. Escondia isso a
todo custo. Não falava, não escrevia por e-mail e nem comentava com
ninguém pelo Orkut. Fazia-se de
forte. Fazia-se de destemido. Fazia-se de inteligente. Mas temia essa
sensação como um borra botas. Temia gostar muito de alguém, pois não
acreditava que aquela felicidade vendida nas propagandas de margarina
poderia ser sua. Não confiava na família. Não confiava nos poucos
amigos. Nunca se sentiu amado.
E ao lado
do futuro-suposto-hipotético metrô de Salvador que, depois de mais de
dez anos, ainda não havia ficado pronto, achava que também deveriam
erguer um outro monumento imponente de inutilidade, com jardins
suspensos, torres residenciais com apartamentos para os mais diversos
estilos de vida, torres empresariais e uma escola 24 horas para atender
os filhos dos privilegiados que não são loucos de saírem do lado de lá
para correr riscos nas ruas fedidas da capital baiana, numa ode ao
mundo da grana e da falta de amor, do lado de cá.
E
nesse paraíso em construção, para marcar com ênfase o signo da
riqueza, haveria também um shopping exclusivo de alto luxo, com grifes
internacionais nunca antes aportadas na história da Bahia, e heliporto,
para os pobres mortais estressados que não suportam mais carros e
trânsito caótico da Rótula do Abacaxi. Uma metonímia. Mas ele achava que
as coisas mais simples da vida não lhe pertenciam. E, no mais absurdo
delírio, policiais militares travestidos de capitães do mato ou de
capangas de Lampião, viriam roubá-las a qualquer instante. Ele já tinha os vira nas fotos do Museu de Arte,
no Corredor da Vitória. Seus espectros desbotados e descolados das
retinas formando um exército de sombras ensandecidas e sedentas de sede
de sangue, como sanguessugas, queriam violentá-lo e em seguida
devorá-lo. E agora todos eles já estavam ali no seu quarto quadrado
cheio de livros velhos e empoeirados. Realmente, Deus é uma fraude!
Paredes
não eram empecilhos para a manada armada cinzenta de insanos que havia
chegado do Inferno para fazer justiça com as próprias mãos. “O paraíso não lhe pertence!”
– gritava aquele que parecia ser ainda o mais nítido e vivo dos
fantasmas, com jaleco e pó de giz nas mãos, apontando a arma tosca e
enferrujada, mas sem dúvidas, capaz de ceifar mesmo os sonhos escondidos
nos sonos mais profundos e obscuros dentro da sua cabeça, da mesma
forma que a Vida já havia o feito, pois ele não acreditava em amores de estação
nem em receituários perfeitos de livros de autoajuda. O máximo que
poderia acontecer é ter o seu cérebro despedaçado com um tiro na
cabeça.
E da mesma forma que a quase
totalidade dos empreendimentos em Salvador que prometem distância da
pobreza e dos riscos que ela representa é batizada com nomes de
inspiração anglo saxã, francesa ou italiana, no máximo, ele via o que
os outros não viam. Mentiras em comerciais! Profecias em jornais! E
pulam nomes como Manhattan, Privilegge, Village, Square, Prime, Ville e
que tais. E ele lá morando num apartamento de classe Z na Estrada das
Barreiras rodeado de baratas, putas velhas e velhas putas.
Mas
lá, do outro lado da cadeia alimentar, dentro desses verdadeiros
parques de serviços de lazer e conforto, onde há “de um tudo” (*cinemas,
shopping centers, escritórios, agora escolas, espaço gourmet, piscina,
ou melhor, swimming pool, lounge), e o melhor de tudo: a total falta
de necessidade de cruzar o portão de saída para encontrar essa gente
maltrapilha que insiste em transitar por aí.
E
sobre esse desejo crescente e endêmico de afastar-se dos pobres
maltrapilha a qualquer custo, um dado primoroso: ele quando passa de
carro pela Avenida Centenário após a reforma e acha “fofa” a pracinha
construída ao longo de todo o canal de esgoto que há pouco corria a céu
aberto, não se atrevia a pensar que a obra contava com o apoio massivo
da parte rica da avenida. Alguns moradores dos amplos apartamentos de
um dos lados da via estão putos da vida, certos de que, agora coberto, o
ex-canal tornado praça bucólica se transformou mesmo foi numa ponte
que encurtou o caminho para atrair os indesejáveis moradores do Calabar
e do Alto das Pombas à outra margem do PIB, nas bandas da Graça.
Mas,
em um único golpe acordou suado, gemendo, esperando o grito seco que
não escapara da garganta. Abraçou o lado seco do travesseiro com tanta
força e desespero, mesmo sabendo que a matéria-prima de que teciam o seu
idílio era liquefeita e impossível de ser contida em um par de braços,
em um par de penas, ou num cu. Ainda podia sentir as presenças
indeléveis dos coriscos vesgos e dos jagunços mortos. Sabia que nada poderia demovê-los dos seus eternos destinos de justiceiros cegos e alienados, como evangélicos doutrinados por mercenários pedófilos.
Mas preferiu sonhar de olhos abertos, abraçado ao seu antiherói de
mangá, desenhado em tênues traços de nanquim numa estória vivida nos
anos 80. E manteve-se assim até que a luz do dia lhe desse alguma
garantia de que a brigada dos sertões tivesse dado ao menos uma trégua.
Tudo em vão. Aos inconformados, resta correr para a incorporadora mais
próxima, comprar um passaporte para um desses paraísos artificiais à prova de pobres e sair cantando o novo hino do axé: "Tchau/I have to go now",
pois amores não existem. Amores são apenas gozos molhados em camas
quentes. E o máximo de romantismo que ele ainda acreditava era de que um
dia todos estariam mortos, pois a morte é o verdadeiro pacto
romântico.
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Elenilson Nascimento
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