Domingo, 03 de Maio de 2009.
Estava na Bienal do Livro de Goiás, atuando no corpo-a-corpo, vendendo a Antologia do Bar do Escritor de forma guerrilheira, abordando as pessoas, oferecendo literatura, praticando a arte de escrever de forma física, full contact. Como era o último dia da feira, muita gente estava aproveitando a queda dos preços e as vendas prometiam. Os corredores cheios de visitantes, expositores fazendo contatos, leitores conferindo estantes, editores sondando escritores; estava empolgado com a possibilidade de fazer bons negócios, mas também estava com a cabeça quilômetros dali. Mais exatamente no Maracanã, onde rolava Flamengo e Botafogo. Mas como deixar a primeira participação em uma feira?
Conversei a respeito do assunto com o Jurandir Araguaia, o escritor que havia cedido o espaço para que pudesse expor meu trabalho e dos companheiros do BDE e chegamos à conclusão que a coisa mais profissional a fazer era continuar com o stand aberto, pois o evento ainda se estenderia até as 18:00 h, acabando no mesmo horário que gritos de “É campeão” estivesse nas gargantas de diferentes torcidas em diferentes estados.
Mesmo sabendo que a era a coisa certa a se fazer, ainda assim ficava com o pensamento longe, imaginando a quantas estaria a coisa. Conversava com as pessoas, apresentava os livros, mostrava diversos títulos, falava sobre os autores, enumerava a origem de cada um, mas todo momento a imagem de uma bola cruzando o espaço das traves, indo morrer gloriosamente nas redes ficava rondando a mente. Vendi cinco livros enquanto rolava o primeiro tempo e em quase todos dei uma vacilada na hora de autografar: caneta que fura página, erro de data, até o ápice que foi a troca de nome em uma dedicatória. Tenho uma habilidade natural em ser desastrado, mas assim já é demais.
Um amigo ligou durante o intervalo, tomando todas, estava alguns coqueiros pra lá de Marrakesh, mas no ritmo dos 2 x 0 do Flamengo ele atravessaria a África toda rapidinho. Imaginava isso enquanto comentava o mercado editorial para um jornalista que buscava respostas sobre o futuro da literatura contemporânea no século das comunicações instantâneas. Bom, era isso ou qualquer coisa que tivesse um título extremamente grande e que se mostrasse aparentemente culta.
Alguém de um stand próximo conseguiu descolar uma televisão e “o pobre entretenimento das massas invadiu o sagrado solo da literatura,” segundo as palavras de um poeta performático que estava presente. Aproveitei para espichar o olho e ver se conseguia alguma informação relativa ao duelo no Maraca. Em rápida sucessão, um uniforme alvinegro corria para o lado do campo, várias pessoas pulando na arquibancada. Sinal de gol. A tensão começou a se apossar do resto de pensamento que ainda tinha.
Como a imagem estava um tanto truncada, um dos presentes resolveu agir mudar a configuração da coisa. Acabou derrubando a tevê; um baque surdo no chão, algumas fagulhas no ar e dezenas de torcedores imaginando milhares de formas dar fim ao infeliz.
Voltei então para a literatura novamente. Recebi a visita do escritor e jornalista Valdivino Braz, que propôs um negócio para lá de generoso: dois por um. Minha pequena biblioteca particular saiu no lucro. O papo anarquista e amistoso me devolveu a serenidade para dar tempo ao tempo e saber do resultado mais tarde. Na verdade, cheguei até a esquecer a partida. Acontece que o velho guerreiro das letras teve que puxar o carro. Até os bárbaros vão para casa uma hora.
A ansiedade voltou para ficar, assim como o Roberto disse um dia. Perguntei a uns dois ou três passantes e nada de notícia. Foi quando vi um sujeito com um radinho de pilhas colado ao ouvido, daqueles que a gente nem acredita que exista mais. Vinheta de programa de esportes derramando-se para fora das minúsculas caixas, batata: o cara com certeza saberia do resultado. Adiantei-me com fome de informação, coração aos pulos e os ouvidos apurados para não ter que perguntar mais de uma vez (tem gente que não gosta de responder mais de uma vez, vai que fosse o caso). O elemento me olhou profundamente no fundo dos olhos e, como eu não portava nenhum adereço que demonstrasse minha filiação futebolística, arriscou: Botafogo 3x2, de virada, 45 do segundo tempo. E saiu andando com jeito de quem estava em uma feira de livro. Na Alemanha.
A espera havia acabado, afinal. Mas a feira do livro ainda continuava, e como em um passe de mágica várias pessoas adentraram o stand ao mesmo tempo, minha atenção teve que ser toda dedicada a estes. Mesmo naquele estado bagunçado da mente ainda consegui fazer as mesmas apresentações sem demonstrar qualquer alteração no humor; um inglês em frente à rainha não teria feito melhor.
Finalmente a feira acabou, começando assim o desmonte. Juntei livros, decorações, cartões, contatos; ainda havia muita coisa a fazer, mas o corpo apresentava um cansaço descomunal. E nem mesmo o convite de um amigo botafoguense (que também estava na feira, ajudando no stand), para tomar umas cervejas às suas expensas me animava. Estava esgotado, física e mentalmente. Decidi ir direto para casa. A noite caiu rápido, e enquanto tirava as coisas do Centro de Convenções os buzinaços dos vencedores saíram das ruas principais, indo para outras paragens. Peguei aquele trânsito de domingo-tarde-da-noite, inóspito, silencioso e calmo. Menos pelos gritos do meu carona, animado com a conquista.
Mas alguma coisa ainda me encucava e não sabia o porquê. Parecia que algo não estava exatamente no lugar em que deveria estar. Foi quando parei isoladamente em um semáforo que descobri. Ao meu lado, parou uma moto, com um casal jovem. Ambos vestidos com as cores da Gávea e com uma estranha animação no rosto, que pude perceber mesmo por entre a viseira do capacete. Não resisti e disparei a pergunta para a moça que ocupava a garupa:
- Aí, quanto ficou mesmo o jogo?
- Você não viu? – o rosto dela irradiava alegria – Um jogão! 2x2 no tempo normal, pênaltis e o Mengão levou!
Soltei o berro preso na garganta enquanto que no banco do carona a felicidade tomou asas. Ia começar a tirar o sarro mais pesado do planeta, cantar todas as marchinhas que sabia e as que ainda iria inventar, quando ao ver a expressão de perplexidade na face do outro (até então tão enganado com o resultado como eu), vi ali a mesma apatia que havia me corroído por mais de duas horas. A horrível sensação de ser vice. Meio sem saber o que fazer, só me ocorreu na hora de citar os versos de Djavan: “Ainda bem que sou Flamengo”.
Um comentário:
deveras, tira o # de antes do teu nome no marcador.
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