O ladrão e a alma
O nome Francisco de Assis recebeu em homenagem ao santo. Virou
Fininho por acaso, no seu primeiro assalto. Na hora da fuga, como era
magro que nem vara foi o único a escapar, esgueirando-se por entre
as barras de uma grade de ferro. Daquele dia em diante, o apelido
pegou e o santo ficou enclausurado na certidão de nascimento.
A mãe, Dona Cidinha,
cozinheira de grandes prendas, deu vida boa a Fininho, dentro do
possível, porque queria que o menino virasse “um homem de bem”.
Não virou. Firmou-se na vida como ladrão e especializou-se em furto
a residências.
Fininho adorava a mãe,
mas tinha medo dela. Mulher de bondade farta, virava uma fera com os
malfeitos que chamava de “coisa do demo”. Quando pegava Fininho
chegando muito tarde da farra, ou sentia nele o cheiro de pinga,
obrigava o rapaz a ajoelhar-se em frente à imagem de Nossa Senhora
das Graças e a rezar duas Ave-Marias em penitência.
O rapaz protestava, mas
ela, irredutível, respondia:
— Reza logo, menino!
Uma pelo pecado, outra pelo pecador.
Dona Cidinha jurava que
depois das duas Ave-Marias no capricho a Santinha pedia a Deus para
perdoar o delito. Por outro lado, se o pecador não se arrependia, e
nem rezava, a Senhora pedia às almas do outro mundo para virem
atormentá-lo sem sossego. Fininho rezava pelo pavor às almas.
Então, aconteceu o
roubo à casa de dois andares. Era ainda cedo quando Fininho encostou
o veículo em frente ao jardim. Proprietário de férias, rua
tranquila, tudo corria bem. Usava como fachada para os furtos um
utilitário branco, com adesivo de floricultura, e nunca estacionava
dentro das casas para não despertar suspeita. Além do mais, desde
que Zé Gaguinho, seu primo, tinha se juntado ao negócio, as coisas
estavam mais tranquilas, porque enquanto um vigiava, outro furtava.
Entrou facilmente na
casa e foi direto para o andar de cima. Por experiência, sabia que
começar por ali era sempre mais seguro. No primeiro quarto, um
aparelho de TV e um de DVD. No segundo, apenas material de costura.
Ansioso, abriu a porta do terceiro aposento, esperando encontrar ali
alguma coisa que valesse mais a pena.
Na cama, uma mulher
idosa parecia dormir. Fininho estancou, sem reação, ficando assim
por alguns instantes. Mas alguma coisa ali não estava certa.
Aproximando-se sem ruído, verificou e comprovou que a coitadinha não
respirava. Morta, completamente morta!
Automaticamente, fez o
sinal da cruz e rezou duas Ave-Marias. E já pensava em sair quando
enxergou, sobre a cômoda, um colar de pérolas pequeno e uma aliança
de ouro. Indeciso, voltou-se para a defunta e desculpou-se:
— A senhora me
perdoe, mas isso aqui não vai mais lhe fazer nenhuma falta mesmo.
E agarrou as duas
joias.
— Devolva! Isso não
é seu! — advertiu uma voz tremida de mulher.
Fininho deu um pulo
para trás, apavorado.
— Quem está aí? —
perguntou, tirando a arma de brinquedo da cintura.
— Eu, ora bolas! —
respondeu a voz.
— Eu quem? —
insistiu ele, sentindo o pelo arrepiar nos braços.
— A pobre senhora de
quem você está roubando as joias.
Fininho se apoiou na
parede, sentindo-se desorientado e tonto. Mas, recuperando-se um
pouco do susto, imaginou que aquilo era alguma brincadeira de Zé
Gaguinho para pôr medo nele. No auge da raiva, ligou para o primo,
reclamando, mas o rapaz, colérico,respondeu:
— Oooolha peeela
jaanela paara a r-r-rrua, seu be-besta! Eu eestou aaaqui na
es-es-quiiina, tra-traabalhando! Nãão aaamola!
Tentando impedir que o
medo tomasse conta dele, agachou-se, procurando pela voz debaixo da
cama. Abriu o closet de porta de madeira e espiou, depois mexeu nas
cortinas. E enquanto o terror tomava novamente conta dos seus
músculos, escutou a mulher irritar-se:
— Como é, vai
devolver o colar e a aliança ou não vai? — insistiu a voz que
parecia de outro mundo.
Jogando os dois objetos
de volta na cômoda, Fininho apressou-se em sair dali, mas antes que
seus pés obedecessem, a voz gritou:
— Nem pense em ir
embora agora! Se sair daqui, vai se arrepender!
As almas! As almas de
Nossa Senhora tinham vindo persegui-lo pelos pecados, pelos furtos,
pela vida de ladrão! Bem que a mãe tinha avisado!
Parado no meio do
quarto, tremendo, perguntou num fio de voz:
— Dona alma, o que a
senhora quer que eu faça para me deixar em paz? Diga!
— Pouca coisa. Uma
penitenciazinha aqui, outra ali e você pode ir embora, perdoado.
— É só falar, dona
alma! O que a senhora quiser, viu? — continuou, sem coragem de
olhar para a defunta.
— Vamos lá. Vou lhe
dizer tudo o que tem a fazer. Preste a atenção. Primeiro, arrume as
camas dos três quartos.
— Como?! —
estranhou o rapaz.
— Isso mesmo, e ande
logo antes que o meu filho chegue, porque se ele pegar você aqui é
cadeia na certa!
De onde é que Zé
Gaguinho tinha tirado a informação de que os moradores daquela casa
tinham viajado? — remoía-se Fininho — Ah, Zé Gaguinho, você
hoje vai se ver comigo! — esbravejou.
— Alôô! Você ainda
não se mexeu, é?
— Mas arrumar as
camas é penitência, dona alma?
— Uff...você nem
sabe o quanto! Obedeça logo, vamos!
Acostumado a ajudar a
mãe em casa, Fininho colocou rapidamente em ordem as camas dos três
aposentos.
— Posso ir? —
perguntou timidamente.
— Que pressa é essa?
Você não estava com pressa quando entrou aqui! Ainda tenho mais
duas tarefas para você, antes de deixá-lo partir.
— Duas? Então diga,
por favor, dona alma, diga que eu faço!
— 1º: varrer a casa.
2º: preparar o almoço. Só isso. Depois, pode ir embora.
Mas que alma folgada!
Arrumar, cozinhar...
— Está pensando em
quê? — interrompeu a voz da defunta — Quer desistir? Tudo bem.
Eu posso começar a atormentar a sua vida, quer ver?
— Nem pensar, dona
alma! Calminha aí! Só estou achando esquisito esse negócio de a
senhora ficar me pedindo pra limpar e cozinhar! Isso não parece
penitência... É muito esquisito.
Com uma risadinha que
deu calafrios em Fininho, a voz explicou:
— Hehehehehe! É que
eu fui empregada doméstica. Trabalhei aqui nesta casa durante muitos
anos, até hoje, quando morri. E não consigo pensar num castigo pior
do que as tarefas domésticas, hehehehehe! Ande! Ao trabalho, meu
rapaz! E se quiser falar comigo, volte aqui em cima, porque como eu
desencarnei há pouco tempo, ainda não consigo ir para longe do meu
corpo. Acho que a missa de Sétimo Dia vai dar um jeito nisso...
Encharcado de suor,
aterrado pela companhia da alma, prometendo à Santinha que iria se
emendar, correu a se desempenhar das penitências solicitadas. Em
menos de uma hora, o cheiro de casa limpa se misturava ao de um
almoço apetitoso. Retornou ao quarto e chamou a alma, na esperança
de ela ter ido embora:
— Dona alma?
— Terminou tudo?
Ali estava ela,
esperando por ele. Alma chata!
— Terminei. Posso ir
agora?
— Pode. Agora pode.
Fininho alcançou a
porta em duas passadas mas, antes de sair, uma curiosidade que o
atormentava falou mais alto:
— Dona alma —
perguntou sem se virar — a senhora pode me responder uma coisa?
— Depende, meu rapaz,
depende do que você quer saber.
— A senhora é uma
alma do outro mundo, dessas que só aparecem quando a gente faz coisa
errada, ou é uma alma penada, que não encontra rumo e fica por aí
vagando e perseguindo as pessoas? — perguntou sem respirar.
— Com eu disse,
depende, meu rapaz, depende.
— Do quê? —
insistiu Fininho.
— Assim que a gente
desencarna, tem que começar a ajudar os vivos a encontrar o seu
caminho. Se corre tudo bem, a gente vira alma do outro mundo. Agora,
se o sujeito é teimoso, insiste nas coisas erradas, a gente vira
alma penada e persegue o infeliz eternamente.
As pernas empurraram
Fininho escada abaixo, aos tropeções, mas antes que alcançasse a
porta da rua, ouviu de novo, distante, a voz da alma:
— E precisa rezar,
viu meu rapaz? Rezar muito para as almas!
Saiu dali um homem de
bem. Sem fazer caso do carro que o esperava com Zé Gaguinho ao
volante, desceu a rua feito um louco, repetindo: “Um rosário
inteiro, minha Santinha, um rosário inteiro, eu juro!”.
Na casa, uma senhora de
cabelos brancos desligou o moderno circuito de comunicação que
interligava o seu closet ao closet do quarto ao lado, ocupado pela
defunta que tinha lhe servido de empregada, de companhia e de amiga
pelos últimos 40 anos de vida.
Entrando no quarto da
morta pela porta camuflada atrás das prateleiras, colocou-lhe no
pescoço o pequeno colar de pérolas e sussurrou em seus ouvidos:
— Quem diria, hein,
minha amiga? Afinal, a tal geringonça que o meu filho tanto insistiu
em instalar entre os nossos quartos teve a sua utilidade!
E soltando um riso
abafado, completou:
— Eu não lhe disse
que você podia partir tranquila que eu dava um jeito de me
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Cínthia Kriemler é carioca e mora em Brasília há mais de 40 anos. Relações Públicas por formação. Contista e cronista por necessidade de respirar o ar meio puro, meio diesel das palavras. De vez em quando, passeia pelas Cartas e Artigos.
Um comentário:
Cinthia, ficou bem divertido!!!
Faltou a última palavra? A última frase?
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