sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Quando os anjos não respondem



Primeiro foi a espera do fim de uma noite que não acabava... Embora deitado, acordado estava. Um rolar incessante por toda a madrugada, o corpo parecendo estranhar os próprios lençóis. O aguardar do dia é tão cruel quanto os momentos que antecedem um veredicto. O que será de mim depois destas horas, somente o encontro pode dizer... O banho e a preparação me parecem serem os últimos a que me darei o luxo de fazer. Pelo menos por um tempo. Um café frugal, com cereais e frutas, tem o gosto da refeição do condenado. Espanto pensamentos ruins; apesar da esperança acompanhar-me, não prevejo bonança, nem tempo bom. Essa dicotomia de expectativas me enerva e se apodera lentamente de mim e dos vários seres dos quais sou miseravelmente composto.

Saio de carro em pleno trânsito da metade do dia. Percorro ruas insólitas e desertas, domingo é sempre assim, um prenúncio do fim do mundo, quando as almas humanas não mais andarem sobre esta terra. Isso se dá até o estuário de pessoas que é um terminal rodoviário. O enxame delas me faz refletir se realmente teremos alguma chance de continuar por aqui... Mas não, em cem anos, nenhum destes estará sorrindo ou sofrendo. Seguem suas existências como a colméia que são, pululam de lá para cá sem se verem, tocarem, sentirem. Sinto isso de longe. Distanciado dos demais, aguardo. Em algum instante, o contato será feito. Ando de um lado para o outro, uma besta enjaulada nos próprios pensamentos. 
O grande animal de dez rodas estaciona e após um séqüito de passageiros lentos e desobrigados, eis que surge em meio aos outros, quem eu esperava. Não... Somente parecer ser quem eu esperava. Mas mesmo não me reconhecendo completamente, aceita minhas saudações: um tímido beijo e um abraço temeroso.    Abraçar um iceberg seria menos gélido. Segue-me como seguiria um cão guia, deixa-se levar por entre lojas e postos bancários; atravessa o estacionamento notando o suor de minhas mãos.
Cruzo a cidade novamente, tentando impor ênfase na voz que teima em se manter trêmula. Por várias vezes preciso de concentração para que minha palavra soe natural como o arrulho de um pombo, mas neste processo me perco nos caminhos de minha própria cidade. Os locais que havia demarcado para serem percorridos somem todos da minha mente e dou voltas e voltas sem sair do lugar. Com a conversação acontece o mesmo, tudo gira várias e várias vezes, estou tão tonto e desconexo!
O destino nos encaminha então para mais um dos poços de vaidade, um local aprazível aos que ganham e se refastelam. Acomodamo-nos em meio a eles, como cães bem domesticados. Estamos no meio dos outros-que-vivem, que comem, bebem, mentem, sentem... Sinto-me um deles, por instantes. Quero meu lugar na mesa dos despreocupados, dos que só pensam em seu próprio bem. Eu mereço, afinal já me importei por demais com os outros e agora busco um pouco de alento para o meu ser. E esse alento, neste momento, e em vários outros é ela, que descortina o rosto impassível em minha direção.
Trata-me agora de outra forma. Busca acalmar os ânimos, preparar o novilho para o abate. Uma presa assustada não dá bom sangue, nunca. Os primeiros acordes de Don Giovani ficam reverberando na minha cabeça, o lento e agônico Wolfgang Amadeus desiludido da vida. O vai e vêm das incertezas, o compasso trágico daqueles minutos... Par delicatesse, j´ai  perdu ma vie![1] Eu ali, cheio de pudores e temores, um vassalo em busca da satisfação de quem lhe comanda o destino, um perdido tentando apontar caminhos sem nem ter sido consultado ainda...  Ah, que lê temps vienne, Où les coers s´enprennent.[2] O ardor, onde andará aquele belo e saudoso ardor? Apossamo-nos de bebidas que não fermentam o cérebro (já tão acelerado, coitado), e fazemos aquele que será o brinde de Sócrates, o brinde da verdade, a saudação do veneno ingerido.  Apesar de tudo o que aparentemente representamos um para o outro... Apesar das juras e promessas, das experiências e de toda recordação boa que ainda resta.

Essa forma sutil de repulsa e nojo... Que só pode ser tocada pelos meus dedos longos.
 
O meu desespero se eleva. Eu a estou perdendo, gradativamente escapando-me pelos dedos e não sei como a perdi, se foi para outro, se para o destino, para o maldito momento ou se por ser quem eu realmente sou. O que me enlouquece é essa falsa falta de nexo pois tudo o que acontece tem um motivo e um porquê... E não me foi nem ao menos dada uma razão plausível. Um simples “acabou”, seco e definitivo como a queda da última folha de outono. Meus campos já se encontram sob o manto da neve dos sentimentos dela, não há mais raios de sol no seu olhar. Vejo somente uma grossa calota onde antes havia fogo e paixão, essa visão mortífera que me direciona, que me aperta contra as cordas e acelera a contagem para o nocaute... Estou zonzo e finjo não cambalear, não abaixo a guarda, mas mesmo assim sou atingido diversas e repetidas e incontáveis vezes, golpes profundos que não só dilaceram minh´alma, mas que tentam estrangular o amor que ainda teima em se fazer presente. Como um sentenciado perante o pelotão de fuzilamento, olho em frente e mantenho a visão firme a duras penas, tentando disfarçar os graves gritos nos quais meu ser agora se esvai. Tento ser amável apesar do riso fraco, procuro ser gentil ainda que a explosão seja iminente, faço meu melhor papel de descontraído, traindo meus próprios sentimentos que me ordenam que me lance dali para fora, que atinja o mundo com a minha revolta...  Ela que já me foi promessa de futuro multicor, encerra em meu peito agora um punhal sem cores... Tinge-o com o rubro do meu ser, quase prazerosamente... 
Para completar o quadro do desastre, meu outro ser, o que me acusa por todos os insucessos que tive, tenho e terei,  pelas misérias por que passei ou pelos erros que nem mesmo cometi, este que me olhava triunfante, cercado por tudo aquilo que eu abandonava, ele do espelho, se escancara em deboches, dizendo novamente que estou na lona, com o gongo batendo em alto e bom som a minha derrota, os gritos do público e a ovação dos outros-que-vivem... Eles estão a salvo, mais uma vez, pois não lhes penetrarei o território por um bom tempo, terei que voltar para as sombras, pois à elas que pertenço, eu e todos os que comigo andam... Párias.
Clamo aos céus uma prece muda, mas não há vislumbre de haja qualquer tipo de salvação, a redenção não se completa para o suplicante. Ela tenta me lembrar por diversas e longas vezes que ainda guardo algumas parcas e inúteis qualidades, que tenho sim, qualquer tipo de bondade. Meu outro, aquele que se esbalda com minha queda, cinicamente ri de tudo isto: “O que te adianta tudo isso, pobre diabo? No fim, estará tão só quanto eu, pois somente lhe restará a mim, como sempre foi e sempre será!” – Tento fazer com que ele se cale, mas seus gritos são por demais fortes para serem abafados, sua dor, a minha dor, é que lhe dá força e consistência para tal... Olho para minhas mãos e as sinto tremer, já não tenho argumentos, e ainda preciso manter enclausurado este monstro que se arvora dentro do ser, que cresce na adversidade e por fim tomará conta das minhas ações... Já não há mais o que fazer aqui. Já não tenho palavras, emudeço a cada sílaba que ainda consigo dizer. Ela partirá em breve, talvez nem nos vejamos mais. A distância que nos separa deixa flagrante o desconforto de ambos. Esta é a senha para seguir meu caminho. Não peço clemência e nem ela demonstra qualquer disposição para oferecer tal coisa. Utilizando das últimas forças, levanto-me lentamente e dou-lhe o beijo da despedida, de adeus, do fim. Caminho para o veículo sem demonstrar o quanto estou trôpego e sem rumo. Antes de sair ainda lhe dirijo um derradeiro olhar... Imponente, já se armou outra vez com seus escudos espelhados a adornar o rosto, impessoais como o frio aço de uma baioneta. Perdido, está tudo perdido...  
Ainda consigo dirigir alguns metros antes de ser vencido. Pelo retrovisor, vejo que quem está no comando agora é o Outro, e já não tenho condições de enfrentá-lo. Sádico, me lança no rosto todo o meu fracasso e ainda recomenda:
− Odeia-a com todo o seu amor e tente amar esse ódio. Só isso irá te salvar. – discordo mudamente. Não... Não farei isso. Deixarei que ele aplaque a sua dor e um tanto bom da minha, mas não seguirei este funesto conselho. Ou tudo o que vivi perderá o valor.
Acompanho-o a vários lugares lúgubres onde se aparelha de vários vícios que havia conseguido deixar pelo caminho, uma corrida insana em busca da sanidade, do autocontrole...No vale da sombra da Morte ao som da dor das horas, entre baforadas e longos goles, esse ser que me conduz violentamente pelos caminhos, grita e vaticina:
−Não há nada de especial no mundo! Não há nada de especial no mundo!
Uma carreta em sentido contrário. A velocidade excedida e os reflexos perdidos, embotados. Os gritos que não cessam, até o abrupto choque de massas, suculenta manchete para o dia seguinte:

− Não há nada de especial no mundo!

A testa está banhada de suor e o telefone não para de tocar:
− Alô... – sonolento e quase fora da realidade.
− Oi amor, tava dormindo?
− Hã?...Ah, sim, claro...
− Sonhou comigo?
− Na verdade, tive um pesadelo... Mas já passou.

* Conto integrante do livro premiado na Bolsa de Publicações "Hugo de Carvalho Ramos", da União Brasileira de Escritores, seção Goiás, a ser publicado em breve... 

[1] “Por delicadeza, eu perdi minha vida”. Verso de Chanson de la plus haute tour, de Rimbaud.
[2] “Que venha a hora, que as almas enamora” idem. 

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