terça-feira, 28 de maio de 2013

Quim Bob Dylan


Quim Bob Dylan

             Existem aquelas personagens que nos ficam para sempre na memória. Umas pelas piores razões, mas outras pelos momentos inesquecíveis vividos.

Joaquim Ricocas, ou Bob Dylan, alcunhas pelas quais era conhecido na cidade pacata do baixo Minho, era uma pessoa bastante excêntrica. Talvez se tivesse nascido e vivido em Nova Iorque não fosse apelidado assim. As pequenas localidades portuguesas criam as suas personagens sem o mínimo respeito pela condição humana. É uma realidade que nenhum de nós pode fugir.

Convivi muito de perto com o Joaquim e pude constatar que era uma pessoa de bom coração. Um pouco fora do ser comum, tanto na sua fisionomia, como nos adereços que ele fazia questão de exibir.

Tinha lutado na guerra colonial, havendo quem dissesse que ficara com aquele aspeto e discurso, devido a traumas da guerra. Mas eu não queria crer que fosse tudo disso. Havia algo nele mágico de uma autêntica pop star. Era um homem de estatura baixa, todo ele ruivo, usava uma barba muito esmerada e um cabelo liso cumprido que o entrelaçava em tranças finas. Havia quem dissesse que dormia com uma touca para não estragar o penteado. Coisa que eu acreditava, como verificou-se mais tarde.

Toda esta emblemática personagem tinha os seus seguidores, nas suas incursões musicais pela cidade, muitas vezes em autênticas serenatas do tipo medieval. Ele era um exímio tocador de guitarra, aliás tocava qualquer instrumento musical de ouvido. Daí o apelidarem de Bob Dylan, cantava e tocava apaixonadamente e o curioso é que cativava quem por ele passava e o ouvia.

Uma das características muito peculiares do Joaquim era a linguagem usada, tanto a falar normalmente como a cantar. Quase todas as frases que dizia eram de um surreal soberbo, mas às vezes de difícil interpretação. Mas era bastante agradável de ver e ouvir o maravilhoso mundo de Joaquim.

Quando estava bem-disposto e queria borga não faltava quem o acompanhasse nas suas incursões, muitas vezes para outras cidades. Depois de emborcar os copos de vinho branco, as coisas afinavam e ele executava excelentes shows musicais e teatrais. Para dar uma ideia do discurso desencontrado para o cidadão comum da cidade, muitas vezes começava assim uma conversa: - Ontem esteve um dia de gesso cré, passei pela rua dos candeeiros e só vi esferovite negra.

Ou então: - Anda-me a caçar se tiveres bombazine grossa!

Eram frases completamente disparatadas, e difícil era de entender o que Quim Ricocas dizia.

Quem o visse, espantava-se, pelo seu visual excêntrico. Os sapatos tinham um salto de quinze centímetros, as calças feitas por ele, ao boca-de-sino, ilustravam a época dos anos 60. Além disso costumava usar umas blusas que faziam lembrar artistas circenses.

Muitas vezes era incitado a fazer serenatas a meninas burguesas da cidade, para regozijo de alguns que se queriam divertir com aquelas performances de Quim. A maior parte das vezes, aquelas declarações de amor cantadas e tocadas ao som de acordes melodiosos da sua guitarra, eram respondidas com o chamamento das autoridades por distúrbios da ordem pública.

Havia noites que me cruzava com Quim, que me saudava fugazmente, e daí surgiam, por vezes, reuniões amigáveis, como a de um dia que o levei a minha casa, e depois de uns copos bebidos, e de declamações poéticas descabidas, como era costume nos seus rituais, quis comer os meus peixinhos de aquário. Chegou mesmo a meter a mão dentro do aquário, não fosse eu, desviá-lo de lá, não sei o que aconteceria. Nele eram previsíveis as coisas mais invulgares.

No fundo, apesar do seu visual meio brejeiro, eu gostava dele. Tinha sido a sociedade que tinha feito aquela personagem. Dentro do trauma da guerra colonial e da não-aceitação do politicamente correto da sociedade, era um homem de bom coração. Fazia-me um pouco de impressão, como podia ele nunca tirar os seus óculos, tipo rayban, de lentes espelhadas. Até quando dormia não tirava os óculos, aliás pude constatar isso aquando de um acampamento que ele apareceu. Dormiu ao meu lado na tenda, praticamente sentado e de óculos postos. Por último a sua barba tinha-se transformado numa longa trança barbal.

Naquela noite que dormiu na minha tenda, estivemos ao rubro; fomos ao bar da praia, e estando lá um senhor a tocar concertina, logo Joaquim interagiu pegando na sua guitarra, cantando e tocando ao desafio. Fora um momento único, toda a gente presente maravilhava-se com aquele espetáculo musical. Como se não chegasse, logo de seguida, quando o bar fechou fomos todos para a cidade de Caminha, numa “excursão”, de carros, com a motivação para uma noite de glória.

Quando caminhávamos pelas ruas históricas de Caminha, onde os bares se multiplicavam ao nosso passar, Quim, ia entrando num e noutro, para espanto das pessoas que lá estavam. Então, às vezes entrava só para largar uma “farpa”, ou libertar uns gases, numa tentativa, animal, de marcação de território. Passado um tempo, já tínhamos um regimento de pessoas, que se tornaram fãs de Quim, andamos pelas ruelas com Quim reproduzindo suas baladas. Demos a volta à Sé de Caminha em plena apoteose. Foi uma noite em grande, momentos únicos que passamos, e de volta ao acampamento, e já exaustos, fomos para a tenda. Quim simplesmente se sentou, protegendo o seu cabelo, e sem tirar os óculos, ficou mesmo assim todo o resto da noite.

Havia algo que já nos últimos anos que convivi com ele me deixava triste. Joaquim fechava-se em casa dias e até meses, ninguém o via. Nunca entendi a sua reclusão, ele não era de desabafar com ninguém.

Lembrei-me de falar do Quim Bob Dylan, Quim Ricocas, ou Joaquim para mim, porque deu-me uma certa nostalgia de um tempo, vivido, fora das novas tecnologias, onde os valores da amizade prevaleciam, e onde o preconceito social não existia no nosso núcleo de amizades.

Joaquim! Onde quer que estejas, estarás sempre no meu coração.

 

In “ Contos de Encantos “ a editar

Quito Arantes/Portugal

4 comentários:

Anônimo disse...

"(...)ficam sempre na memória(...)"- episódios da nossa vida passada, que fazem parte do presente, porque os recordamos, com muita saudade!
E, com vontade de recuarmos no tempo, sonhamos!
Graças ao Sonho, pois é ele que "comanda a vida"!
OBG. pelo momento!

Anônimo disse...

Segunda-feira, feriado em Nova York. Estava o presidente Nickson a falar com César Augusto e chega Cochise montado num cavalo com 4 cochames de aço inox forrado a palha seca. Tudo isto estava contido num buraquinho com 30 cm de diametro e 10 de profundidade e 30 milhões de pipas de água choca. Ó montanha rasgada pela solidão.

Quim Ricocas anos 60/70

Anônimo disse...

Lindo, tudo verdadeiro, o Quim era o maior

Maria disse...

Pois a mim gritou-me que era uma puta - não o conhecia, nem nunca lhe tinha falado.
Boa pessoa? Depende para quem. Eu gambém nunca me esqueci dele, nem dos sarilhos em que me metzu, com a minha mãe que estava comigo, quando ele decidiu de me chamar assim.