sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A CHAVE

Não tenho medo de fantasmas. Quero dizer, quase nunca. Porém, confesso que me assustei. Era apenas um sonho, mas nele vários seres de outro mundo me perseguiam. Corri, corri e, já desesperada, acordei. Dei um pulo ao despertar na minha poltrona no final do ônibus. Fazia frio e mesmo assim eu estava suando. Olhei pela janela na tentativa de me recompor e vi a fumaça ao longe. Cerrei os olhos para ter mais nitidez e por alguns segundos tentei enquadrar o incêndio, mas tudo o que pude ver foi o imenso mato que corria pela beira da estrada e lá na floresta, escondido, o telhado de uma casa velha. Assim como apareceu, sumiu. O cheiro ficou no ar. 
A viagem estava tão cansativa que nenhum dos passageiros pareceu se importar. Muitos ainda dormiam. A impressão que tive é que somente eu vi aquilo. Dei de ombros. E o ônibus veloz deixou o fogo para trás.
Apesar do pequeno susto ao acordar, os pensamentos finalmente foram se tornando mais claros. 
Éramos uns 30 passageiros naquele veículo. Cada um carregando seus sonhos e planos. Os meus eram simples: instalar-me confortavelmente na pacata cidade e recomeçar a vida. Aceitei o emprego numa casa de família. Pelo anúncio no jornal seriam duas crianças que ficariam sob minha responsabilidade. Perfeito, pensei entusiasmada. Fiz as malas e lá fui eu.
A pousada que reservei era perto da prefeitura. Desembarquei e a pé mesmo achei o endereço. Instalada, refeita da viagem, fui tomar posse no meu novo emprego. Salário digno, casa e comida. Para aquele momento, me bastavam.
Chegando lá fui muito bem recebida. As crianças? Educadas e prestativas. Uma menina linda de cabelos cacheados e o irmão gêmeo de sorriso maroto. Imaginei que não teria muito trabalho com eles.
Em poucos dias deixei a pequena pousada e fui morar no quarto de hóspedes da casa. Logo me adaptei à rotina. Os patrões rapidamente se transformaram em pais adotivos para mim. Eu estava muito feliz ali. Acumulei algumas funções e além de cuidar da educação das crianças, passei a organizar a cozinha e a casa. Também passou a ser minha responsabilidade as compras no mercado.
Certo dia, indo em direção ao centro para comprar frutas e legumes, passei em frente a uma casa velha, quase caindo aos pedaços. Achei estranho, nunca tinha reparado na tal casa. Mas lá estava ela, fria e mal acabada, quase mal assombrada. Acelerei o passo e não olhei para trás. Mesmo não acreditando em fantasmas, nunca se sabe. Nos sonhos eles me assombram.
Na pressa de me livrar do calafrio que senti ao passar pela construção antiga, dobrei na rua errada. 
– Ah não, errei o caminho, lamentei a um gato que me olhava de soslaio. Mas fui em frente. Vi que lá longe a rua se bifurcava. Rua deserta, apenas terrenos arenosos ou abandonados. Caminhava rapidamente. Perdi de vista a casa velha. E me deparei com outra esquisitice: uma casa escondida atrás das árvores. De muitas árvores. Quase uma floresta. Curiosa, fui vencida pelo impulso e entrei pelo matagal. A minha esperança era conseguir alguma informação de como chegar ao centro da cidade.
Vindo do nada, apareceu um homem mais assustado que eu, pedindo ajuda. Desesperado, em pânico, falava de um incêndio na casa. Estiquei o pescoço e avistei a fumaça. Imediatamente me vi de volta ao ônibus, apavorada olhando pela janela e encarando a mesma nuvem negra, o mesmo telhado. Tentei afugentar a visão, disfarcei e me prontifiquei a chamar os bombeiros ou carregar água para reduzir as chamas. O homem implorou para eu não fazer isso, ele queria apenas que eu cuidasse de uma caixa que carregava nas mãos. Eu disse que sim, cuido, mas o que você vai fazer? 
– Vou voltar, me disse ele. Preciso voltar. 
– Não, insisti. Está um cheiro forte de queimado, pelo barulho das labaredas imagino que esteja muito perigoso entrar por ai. 
Mas ele implorou para que eu pegasse a tal caixa e correu em direção a casa. Fui atrás dele, mas me perdi entre tantas árvores que cercavam o lugar. Quando finalmente enxerguei a fachada da casa percebi que não havia fogo. Nem o homem estava lá. Atônita, dei uma volta completa no terreno. Nem sinal de fumaça. Bati na porta e nada. Ninguém atendeu. Voltei para o matagal aos gritos por alguém. Eu não podia acreditar: ele entrara por aquelas árvores e não saiu em lugar algum! E o fogo, se foi?
Ouvi um carro ao longe. Fui correndo em direção à rua e fiz sinal para o motorista que estacionou. Surpreso me deu boa tarde. Perguntei se tinha visto um rapaz, sujo, apavorado, correndo por ali e ele me garantiu que não. Contou inclusive que estava há algum tempo no início da rua trocando o pneu furado e jurou que não viu ninguém, nem indo, nem vindo. A não ser eu. Fogo? – Não senhora, só o sol quente mesmo.
A mesma sensação de medo dos meus sonhos invadiu meu corpo. Fiquei com as pernas bambas. Esqueci que estava indo fazer compras e voltei para casa dos patrões. Aos prantos. Eu sabia o que tinha visto, o que tinha sentido. O cheiro de queimado estava lá. Eu não podia ter imaginado tudo aquilo e finalmente lembrei: eu tinha a tal caixa comigo. Eu não estava louca.
Corri para meu quarto e quase quebrei a caixa ao abri-la afoitamente. Dentro dela, uma chave. Nada escrito. Nem uma pista do que poderia ser. Escondi embaixo da cama. Caixa, chave e medo. Limpei o rosto, dei uma desculpa qualquer sobre voltar de mãos vazias das compras e fui cuidar do jantar.
Os dias seguiram como se nada dos últimos acontecimentos fosse verdade. Quando o medo quase sumiu voltei a ter pesadelos. E eles se repetiam e se repetiam . Acordava no meio da madrugada com a nítida impressão de que alguém estava comigo no quarto. O pânico tomou conta de mim. Com as noites insones meus afazeres ficavam a desejar. As crianças se afastaram. Os donos da casa já me olhavam desconfiados. Com o tempo além dos sonhos, o cheiro de queimado passou a me atormentar. Sentia no quarto, no banheiro, na cozinha, na sala. Eu, sem saber o que fazer ou pensar, procurava o fogo e não encontrava nada. Procurava embaixo das escadas, atrás das portas, afastava os móveis para achar alguma fagulha, uma fumaça que fosse. Minha figura já estava de dar pena.
Comecei a imaginar que a tal caixa com a chave tinha alguma coisa a ver com isso. Cansada de me sentir apavorada, falei com o filho do jardineiro para me acompanhar até a casa onde encontrei o homem apavorado. O rapaz foi comigo e encontramos tudo bem, nada destruído. Ele também sentiu um leve cheiro de fumaça e chegou a ouvir um barulho que me descreveu como algo queimando. Mas não havia sequer indícios de que alguém estivesse por lá. Tentei a chave em todas as portas e nenhuma abriu. Desistimos.
Não me dei por satisfeita e voltei no dia seguinte por conta própria. Será que a chave abre algo que está dentro da casa? Forcei uma entrada na janela mais velha que encontrei. Apenas o reboco caiu. Inútil. Gritei de tanta frustração. A única resposta foi o vento balançando as árvores. Aliás, a floresta que cercava a casa estava mais densa e parecia ainda maior naquele dia.
Agora estou aqui. Louca e sozinha. As crianças choram ao chegar perto de mim. Dizem que estou sempre com esse cheiro de queimado na roupa, nos cabelos, na pele e sentem medo dos meus olhos endiabrados. Meus patrões mandaram me internar. Eu continuo a sentir o calor do fogo. Às vezes tenho a nítida impressão de ver no corredor do sanatório as labaredas subindo pelas paredes. É só manter os olhos bem fechados que a visão vai embora. Menos o cheiro. E a chave? Está aqui comigo, dentro da caixa. Todos os dias olho para ela e imagino que porta a chave abre. Ou pior, que porta ela deveria manter trancada.

4 comentários:

Giovani Iemini disse...

meeeeedo!

andrea carvalho deca disse...

hehehe a ideia é essa uaahhhaaaaa (risada sinistra hehehe)

MPadilha disse...

Muito bom! Eu adoro o estilo, fantasmagórico e doido!Isso tem cheiro de lenda urbana...

andrea carvalho deca disse...

mpadilha, que bom que gostou! outros do mesmo estilo virão. adoro. beijos.