domingo, 25 de março de 2007

O Centauro de Saramago

Conheceram-se no salão de cabeleireiro. Ele entrou no estabelecimento atrás de uma promoção para corte à máquina e a gerente, uma felliniana de quase 100 quilos, convocou Nélida para executar o serviço. Sentado na cadeira, observando-a através do espelho, Ignácio sentiu o célebre desconforto machista em ser atendido por um travesti. Suas mãos eram pesadas, mãos de homem, a despeito da tentativa de figura feminina que Nélida se esforçava em representar. Não fosse o leve azular da barba e a voz artificialmente colocada, por mulher passaria. Ele voltou para casa incomodado, mas reconhecendo que Nélida havia caprichado no corte.

Na segunda vez, já estavam um pouco mais íntimos e o desconforto diluíra. “Trabalha em quê?”, perguntou Nélida enquanto manejava com maestria a máquina. “Professor de matemática”, foi a lacônica resposta. Como estávamos na Quarta-feira de Cinzas, Ignácio ouviu, atento e assombrado, o relato de Nélida para as outras cabeleireiras sobre suas aventuras no Baile Gay fantasiada de Coelhinha da Playboy. Voltou para casa curioso, imaginando Nélida dentro dos seus trajes carnavalescos.

Na terceira ida ao salão, encontrou um negro forte sentado onde já considerava o seu lugar. A felliniana chamou outra cabeleireira para dar um trato em sua cabeça semi- raspada e Ignácio, disfarçando a contrariedade, ficou bisbilhotando os movimentos de Nélida que, num frenesi entusiástico, esculpia na nuca do Apolo de Ébano a palavra “Mengo”. Voltou para casa platonicamente enciumado.

Em sua quarta visita ao salão, durante ritual do corte, Ignácio pediu Nélida em namoro. Foram juntos para a casa do professor terem sua primeira noite de amor.

Passaram a dividir um quitinete em Botafogo na companhia de um gato angorá chamado Oscar que interpretava o papel do filho que nunca teriam. Viviam como marido e mulher, pois Ignácio não a desejava como homem e tão pouco Nélida prestava-se ao papel ativo. Só um detalhe atrapalhava a paz conjugal: os flácidos 13 centímetros de Nélida. Ignácio tinha verdadeira ojeriza ao falo da amada, mal conseguia encará-lo. Passaram muitas madrugadas de carinhos no escuro, com o membro de Nélida ocultado pelo negrume do quarto enquanto o travesti recebia Ignácio de bruços, escondendo a parte de sua anatomia embaraçosa ao amado.

Um dia, pousou nas mãos de Nélida um livro de contos de José Saramago. Não era dada a leituras, mas interessou-se pela história de um centauro caçado impiedosamente por um grupo de humanos. Narrava Saramago que a criatura mitológica sempre tivera o desejo de dormir deitado de costas, o que sua constituição, meio homem, meio eqüino, o impedia de realizar. Encurralado, o centauro queda-se por um desfiladeiro e tem seu corpo violentamente cortado ao meio por efeito de uma pedra pontiaguda. Em seus últimos momentos de vida, a porção humana do centauro caído de costas experimenta o prazer de sentir solo acariciando seu omoplatas. Emocionada, Nélida cerrou o livro e tomou uma decisão.

Foram quase dois anos de espera, mais seis meses de recuperação após a cirurgia. Dr. Euclides Pessoa, conhecido nos meios cirúrgico-científicos como “O Pitanguy das Xoxotas”, fizera um trabalho digno de figurar em qualquer galeria de arte, dada a perfeição em que construíra a vagina de Nélida. Então, tal qual o Centauro de Saramago, o agora ex-travesti provou da emoção única de, omoplatas roçando os lençóis, receber um homem, seu homem, de frente pela primeira vez na vida e ambos, unidos e extasiados, gozarem os prazeres que um prosaico papai-e-mamãe só àquele casal poderia proporcionar.

Obs: Em virtude dos últimos acontecimentos, embora não tenha utilizado-me do texto do conto “Centauro”, sinto-me na obrigação de citar a fonte que serviu como uma das inspirações para meu conto.
Objecto Quase, de José Saramago. Editora Companhia das Letras, Ano: 1994.

16 comentários:

[barba] Uonderias disse...

abrindo os comentários com honra...
e tirando o chapéu para o miserável filho da mãe que escreveu esse conto magnífico

bravo bravíssimo Dom Lameque
[perdão pelas palavras não mais que sinceras]
sou seu fã

Klotz disse...

Tá lá o dedo do Lameque. Quem é que não sente a mão do Lameque?
Foi bom para você? Para mim foi.
Nem imagine duplo sentido, refiro-me única e exclusivamente ao texto.

MPadilha disse...

Magnífico! Vc foi impecável! Retratou com talento a realidade dos homosexuais, o dia à dia, as agruras, os preconceitos, um verdadeiro relato em forma de conto.Resta dizer que no Basil mesmo que o bilau do cara fosse microscópio, mesmo que os seios crescessem, mesmo que as feições fossem femininas, a cirurgia não seria fácil. Lembra da Roberta Cloose? Teve que ir ao exterior para isso. Parabéns Lemeque, algo me dizia que vc ia sobressair, tu é porreta cara. Beijão

Anônimo disse...

HIuehaiue! Muito, muito bom! SE vê que vc tem segurança no que faz.

Esse Ignácio me deixou com gostinho de quero mais, interessante esse rapaz.

Anônimo disse...

Li o conto e de início imaginei a personagem (Ignácio)levando os seus preconceitos até o final.
Gostei da mudança quando o desenrolar passa a se voltar para a outra personagem (Nélida).
Há espaço para uma renovação na mente do leitor que vai liberando vários finais (mentais) para o conto. Outro ponto fortíssimo.
Sem falar que o comentário da Me abrangeu tudo o que poderia ser dito a respeito.
Uma postagem e tanto, Lameque. Dizem que matematicamente os encontros são calculados e significam a soma do futuro (ou não). Gostei da escolha da profissão de Ignácio (apesar de não ser fã da dita matemática).

ofilhodoblues disse...

Muito bom Lameque! Imagino um homofóbico lendo isso! E adoro leitura desafiadora, que pode incomodar o leitor com seus preconceitos!

Muito bom!

emanuel disse...

achei xôxo...

não vi nada de interessante.

Sem contar q dá pra fazer papai e mamãe tanto pela buceta, como pelo cu.

[barba] Uonderias disse...

Emanuel, presta atenção
o cara não gostava nem de ver o bilau do outro
como que ele ia fazer papai e mamãe?

lê direito pow

emanuel disse...

Tem gente q come mulher feia e não v o rosto da mulher. Como?

Travesseiro.

Deveras disse...

Promessa feita, promessa cumprida.

Esse é o Lama que conheço, cumprindo o que diz e escrevendo com total domínio...

ficanapaz!

Deveras disse...

Promessa feita, promessa cumprida.

Esse é o Lama que conheço, cumprindo o que diz e escrevendo com total domínio...

ficanapaz!

Larissa Marques - LM@rq disse...

Amo Saramago, seu texto é bom, gostei.

Eduardo Perrone disse...

Limão... Vc não me engana... Vc é do meio...rs
E te digo isso , entre reverências e sustos... Saramago adora expôr o cerne Humano,e ,vc mesmo não se chamando Zé(rs...),"estripou" o casal , suas nuances e seus pontos convergentes. Parabéns...
Um dia te conto da Montagem de "Sonhos de uma Noite de Verão" ,com um certo Miguel Falabella, em início de carreira, lá na UGF... E as reações "Acadêmicas"... Miguel é o Falabella que, hoje , conhecemos... Já a peça...rsrsrsrs

Rebellis disse...

Só hoje tive tempo de ler o conto do Sr. Hyde. Palavras muito bem escritas que, apesar da força do tema, exibem uma delicadeza de mestre ao unir o comum ao mitológico. Parabéns ;-)

Paulão Fardadão Cheio de Bala disse...

Centauros têm pau de cavalo.

Muryel De Zôppa disse...

Ô texto bom, Lama. tu cada vez mais surpreendente, melhor.