Estourei o pé numa pelada. Fui ao hospital mas não tinha médico, nem remédio, nem nada. Estava aberto apenas por causa da porta quebrada.
- Vou ter que apelar. - Pensei com o botão das minhas calças.
Liguei prum amigo dum amigo que trabalha num tribunal, desses de 6 horas diárias e recesso de 60 dias por ano, além das férias.
- Não se preocupe. - Disse o sujeito. - Vá fazer uma consulta no hospital do exército.
- Vou ter que apelar. - Pensei com o botão das minhas calças.
Liguei prum amigo dum amigo que trabalha num tribunal, desses de 6 horas diárias e recesso de 60 dias por ano, além das férias.
- Não se preocupe. - Disse o sujeito. - Vá fazer uma consulta no hospital do exército.
Lá quase não me deixaram entrar.
- Mas, seu guarda, tô de bermuda pois o pé inchado não passa pela calça.
- Não importa! - Disse o moço da PE, uns dezoito anos e a cara com espinhas arrebentada pelas barbeadas obrigatórias. - Lei é lei.
- Mas ... - Redargúi num rompante. - e as leis de deus?
Ele fez uma expressão paquidérmica.
- Tá. Pode passar.
Minha mulher esperou entramos para perguntar com os olhos: "que leis de deus, seu ateu maluco?"
- Oras, um argumento idiota merece uma asserção ignorante.
Cheguei-me à moça do balcão de atendimento.
- Estou com o pé machucado. - Sorri com todo o meu charme. - Preciso de um pé-diatra.
Ela me olhou entediada. Chamou o oficial do dia.
- Aqui não é lugar para brincadeiras. - Ameaçou-me o fardado. - E não pode entrar de bermuda.
Suspirei. E apontei uma dondoca que rebolava numa minissaia safada.
- Mas ela pode passear quase nua? - Tentei segurar a língua, mas não deu. - Né, seu taradão?!
O homem chamou o superior que telefonou ao oficial que bipou ao comandante. Em três minutos ele tava lá. Será que o exército brasileiro não tem o que fazer?
- O que tá acontecendo aqui?
Após os relatórios dos inferiores, pedi ao chefe para ser atendido pelo médico que cuidava de pés torcidos.
- É que não sou doutor e não sei a nomenclatura. - Fiz cara de coitado e olhei para moça do balcão. Ela continuou com a arrogância que todo incompetente usa para se proteger.
O comandante conferiu-me na ficha.
- Não vai entrar. - Decidiu.
Fiquei surpreso com a rigidez autoritária. Logo ele completou.
- O hospital está sem ortopedista. - Olhou para cima. - Nem cardiologista, dermatologista, oncologista..Só funciona a urologia pois tem muita...necessidade.
Pensei nos recrutas que, às dezenas, fazem ponto na praça da alimentação do Conjunto Nacional. Uns putos de todos os estados que enchem o rabo de dinheiro trepando com os políticos e empresários enrustidos que vêem à Brasília buscar dinheiro sujo e sexo fácil, não nessa ordem. Percebi que qualquer chiste me arriscaria a uns dias de cana. Prisão e pé torcido não estavam nos meus planos.
Liguei mais uma vez ao cara do tribunal. Relatei a falta de condições do hospital do exército.
- Vou te encaixar aqui pelo tribunal. - Deu-me o endereço de um hospital. - Depois você me dá uma cervejinha de gorjeta. - Também passou o número da conta bancária. Ao menos deixou ao meu critério o valor da propina.
Fui atendido por um ótimo médico, radiografado, analisado, medicado e instruído:"gelo e repouso". Saí satisfeito pelo bom atendimento. Parece que a mão branca do médico já ajuda a curar. Se não fossem tão corporativistas com seus colegas que cometem erros, protegendo crápulas e escroques, acharia-os uma categoria respeitável. Por enquanto ainda são uns pernósticos.
Voltei para casa com a certeza de que o modelo de Estado em que vivemos não funciona, é insuficiente às classes menos privilegiadas. Os ricos sempre compraram seus confortos, porém a definitiva separação social entre Patrões e Miseráveis dá-se agora nesta estrutura do país. A incapacidade de suprir os menos favorecidos é demonstrada na saúde e previdência aprimoradas aos servidores de carreiras privilegiadas. Ou seja, fica claro que o sistema está pouco se importando com os pobres ao dar aos juízes e empregados dos tribunais, preciosos à sociedade, uma qualidade de vida superior, majestosa em comparação ao resto da plebe.
É claro que todos as agremiações desejam o melhor para si, porém tais benefícios devem ser financiados pelos próprios associados, como em qualquer entidade de classe. Quando o Estado paga as vantagens dos tribunais e, quiçá, do legislativo, em outras palavras avisa ao povo que está protegendo "as pessoas mais importantes do Brasil" e continuará abandonando a população à própria sorte, que quer dizer ao SUS.
- Gritam aos ventos que os hospitais do povo são uma porcaria. - Resmunguei.
- Quem? - Perguntou a patroa.
- As vantagens dos servidores do judiciário e do legislativo. - Mastiguei as palavras. - Enquanto nossos dirigentes, este aglomerado de desonestos, não sentirem na pele o infortúnio que é ser brasileiro e ter que conviver com a opulência em meio à nossa miséria, nada será corrigido. Só quando correr o sangue azul das oligarquias dominantes o Brasil se livrará das verdadeiras amarras da sociedade. - Meu dedo em riste cortava o ar.
- Bebeu? - Ela me olhou. - Tá anarquizando de novo?
Deve ser o remédio, pensei.
- Não importa! - Disse o moço da PE, uns dezoito anos e a cara com espinhas arrebentada pelas barbeadas obrigatórias. - Lei é lei.
- Mas ... - Redargúi num rompante. - e as leis de deus?
Ele fez uma expressão paquidérmica.
- Tá. Pode passar.
Minha mulher esperou entramos para perguntar com os olhos: "que leis de deus, seu ateu maluco?"
- Oras, um argumento idiota merece uma asserção ignorante.
Cheguei-me à moça do balcão de atendimento.
- Estou com o pé machucado. - Sorri com todo o meu charme. - Preciso de um pé-diatra.
Ela me olhou entediada. Chamou o oficial do dia.
- Aqui não é lugar para brincadeiras. - Ameaçou-me o fardado. - E não pode entrar de bermuda.
Suspirei. E apontei uma dondoca que rebolava numa minissaia safada.
- Mas ela pode passear quase nua? - Tentei segurar a língua, mas não deu. - Né, seu taradão?!
O homem chamou o superior que telefonou ao oficial que bipou ao comandante. Em três minutos ele tava lá. Será que o exército brasileiro não tem o que fazer?
- O que tá acontecendo aqui?
Após os relatórios dos inferiores, pedi ao chefe para ser atendido pelo médico que cuidava de pés torcidos.
- É que não sou doutor e não sei a nomenclatura. - Fiz cara de coitado e olhei para moça do balcão. Ela continuou com a arrogância que todo incompetente usa para se proteger.
O comandante conferiu-me na ficha.
- Não vai entrar. - Decidiu.
Fiquei surpreso com a rigidez autoritária. Logo ele completou.
- O hospital está sem ortopedista. - Olhou para cima. - Nem cardiologista, dermatologista, oncologista..Só funciona a urologia pois tem muita...necessidade.
Pensei nos recrutas que, às dezenas, fazem ponto na praça da alimentação do Conjunto Nacional. Uns putos de todos os estados que enchem o rabo de dinheiro trepando com os políticos e empresários enrustidos que vêem à Brasília buscar dinheiro sujo e sexo fácil, não nessa ordem. Percebi que qualquer chiste me arriscaria a uns dias de cana. Prisão e pé torcido não estavam nos meus planos.
Liguei mais uma vez ao cara do tribunal. Relatei a falta de condições do hospital do exército.
- Vou te encaixar aqui pelo tribunal. - Deu-me o endereço de um hospital. - Depois você me dá uma cervejinha de gorjeta. - Também passou o número da conta bancária. Ao menos deixou ao meu critério o valor da propina.
Fui atendido por um ótimo médico, radiografado, analisado, medicado e instruído:"gelo e repouso". Saí satisfeito pelo bom atendimento. Parece que a mão branca do médico já ajuda a curar. Se não fossem tão corporativistas com seus colegas que cometem erros, protegendo crápulas e escroques, acharia-os uma categoria respeitável. Por enquanto ainda são uns pernósticos.
Voltei para casa com a certeza de que o modelo de Estado em que vivemos não funciona, é insuficiente às classes menos privilegiadas. Os ricos sempre compraram seus confortos, porém a definitiva separação social entre Patrões e Miseráveis dá-se agora nesta estrutura do país. A incapacidade de suprir os menos favorecidos é demonstrada na saúde e previdência aprimoradas aos servidores de carreiras privilegiadas. Ou seja, fica claro que o sistema está pouco se importando com os pobres ao dar aos juízes e empregados dos tribunais, preciosos à sociedade, uma qualidade de vida superior, majestosa em comparação ao resto da plebe.
É claro que todos as agremiações desejam o melhor para si, porém tais benefícios devem ser financiados pelos próprios associados, como em qualquer entidade de classe. Quando o Estado paga as vantagens dos tribunais e, quiçá, do legislativo, em outras palavras avisa ao povo que está protegendo "as pessoas mais importantes do Brasil" e continuará abandonando a população à própria sorte, que quer dizer ao SUS.
- Gritam aos ventos que os hospitais do povo são uma porcaria. - Resmunguei.
- Quem? - Perguntou a patroa.
- As vantagens dos servidores do judiciário e do legislativo. - Mastiguei as palavras. - Enquanto nossos dirigentes, este aglomerado de desonestos, não sentirem na pele o infortúnio que é ser brasileiro e ter que conviver com a opulência em meio à nossa miséria, nada será corrigido. Só quando correr o sangue azul das oligarquias dominantes o Brasil se livrará das verdadeiras amarras da sociedade. - Meu dedo em riste cortava o ar.
- Bebeu? - Ela me olhou. - Tá anarquizando de novo?
Deve ser o remédio, pensei.
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A série Sou Brasileiro e Não Me Orgulho Nunca pode ser encontrada nas Crônicas do sítio A literatura obscura de Mão Branca
15 comentários:
Seim, eu sei que é grande. Mas basta morder a fronha que tá tudo bem.
Grande sim, mas certeiro também. Teu conto me levou para um dia que tento esquecer. Brasil com tanto para se esquecer. Um dia levei o Di num desses hospitais com o braço quebrado em dois lugares. Colocaram no lugar, o raio x acusou que tava quebrado ainda; colocaram pino, o pino saiu e voltou a ficar quebrado; iam levar para cirurgia pela terceira vez qdo me revoltei; peguei-o, saí até o telefone, chamei um parente e gritei: Socorro! Foram R$ 1.800,00 e um tratamento de primeira. Ele se recuperou rapidinho. Vergonha esse Brasil Gigio. Teu conto é contestador, revoltante e bem brasileiro. Orgulho do Brasil eu só tenho qdo vejo Ronaldinho jogar.Parabéns parceiro. Beijos
Dana-se o tamanho, o conto tá muito bom, bem amarrado vai levando a gente junto, com humor irônico e uma dose de contestação, coisas que me satisfazem bastante.
Maneiro, cara.
Hoje sóbria,rss, li mais uma vez e percebi a tua jogada de mestre. Falar de uma MENTIRA, a Saúde no Brasil, no dia da mentira. Muito bom.
Não importa o tamanho do texto e sim o prazer proporcionado.
Está ótimo, bem a cara deste País de quinto mundo. Sugiro um plano de saúde.
Só um senão técnico. Os hospitais militares são dirigidos por Oficiais Diretores e não Comandantes.
Saudações e descançar!
É, o Brasil às vezes não é mole, não.
Legal, mas excessivamente real. Colocasse boitatás como pano de fundo e eu ficaria mais emocionado.
ficou bom, grande, mas bom
infelizmente essa é a realidade do brasil mesmo
gostei mesmo. fico impressionado com a facilidade de um poeta (pois assim o considero) em trabalhar com a língua dando-lhe diversas significações, mantendo o lirismo no prosaico e vice-versa.
"Ou seja, fica claro que o sistema
está pouco se importando com os
pobres ao dar aos juízes e
empregados dos tribunais, preciosos à sociedade, uma
qualidade de vida superior,
majestosa em comparação ao resto
da plebe".
Texto altamente elucidativo.
Parabéns!
Sonho com o dia em que seu relato se torne tão absurdo, que seja considerado fantástico.
E quando será?
Como vc mesmo disse: Só quando correr o sangue azul das oligarquiasdominanntes(...)
Crônica certeira! PARABÉNS!!!
Crônica da realidade que doí cronicamente. O dono da "bodega" não é fraco não...!
Dizem que no tempo do Costa e Silva as coisas nao eram tão bagunçadas assim....
Que taus???
hehehe.
E pensar que isso é café pequeno.
hum!
Putz, nem mesmo nos paìses ditos de primeiro mundo a saude està boa...
Acho que o buraco da questao é mais embaixo...
Primeiro mundo nao é para qualquer um (hehe), nao importa onde...
Mas gostei bastante do texto!
Alguém aqui, já viu Sicko? de Michael Moore? O que vocês acharam?
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