domingo, 1 de abril de 2007

Sou brasileiro e não me orgulho nunca – Parte XIII

Hospitais

Estourei o pé numa pelada. Fui ao hospital mas não tinha médico, nem remédio, nem nada. Estava aberto apenas por causa da porta quebrada.
- Vou ter que apelar. - Pensei com o botão das minhas calças.
Liguei prum amigo dum amigo que trabalha num tribunal, desses de 6 horas diárias e recesso de 60 dias por ano, além das férias.
- Não se preocupe. - Disse o sujeito. - Vá fazer uma consulta no hospital do exército.
Lá quase não me deixaram entrar.
- Mas, seu guarda, tô de bermuda pois o pé inchado não passa pela calça.
- Não importa! - Disse o moço da PE, uns dezoito anos e a cara com espinhas arrebentada pelas barbeadas obrigatórias. - Lei é lei.
- Mas ... - Redargúi num rompante. - e as leis de deus?
Ele fez uma expressão paquidérmica.
- Tá. Pode passar.
Minha mulher esperou entramos para perguntar com os olhos: "que leis de deus, seu ateu maluco?"
- Oras, um argumento idiota merece uma asserção ignorante.
Cheguei-me à moça do balcão de atendimento.
- Estou com o pé machucado. - Sorri com todo o meu charme. - Preciso de um pé-diatra.
Ela me olhou entediada. Chamou o oficial do dia.
- Aqui não é lugar para brincadeiras. - Ameaçou-me o fardado. - E não pode entrar de bermuda.
Suspirei. E apontei uma dondoca que rebolava numa minissaia safada.
- Mas ela pode passear quase nua? - Tentei segurar a língua, mas não deu. - Né, seu taradão?!
O homem chamou o superior que telefonou ao oficial que bipou ao comandante. Em três minutos ele tava lá. Será que o exército brasileiro não tem o que fazer?
- O que tá acontecendo aqui?
Após os relatórios dos inferiores, pedi ao chefe para ser atendido pelo médico que cuidava de pés torcidos.
- É que não sou doutor e não sei a nomenclatura. - Fiz cara de coitado e olhei para moça do balcão. Ela continuou com a arrogância que todo incompetente usa para se proteger.
O comandante conferiu-me na ficha.
- Não vai entrar. - Decidiu.
Fiquei surpreso com a rigidez autoritária. Logo ele completou.
- O hospital está sem ortopedista. - Olhou para cima. - Nem cardiologista, dermatologista, oncologista..Só funciona a urologia pois tem muita...necessidade.
Pensei nos recrutas que, às dezenas, fazem ponto na praça da alimentação do Conjunto Nacional. Uns putos de todos os estados que enchem o rabo de dinheiro trepando com os políticos e empresários enrustidos que vêem à Brasília buscar dinheiro sujo e sexo fácil, não nessa ordem. Percebi que qualquer chiste me arriscaria a uns dias de cana. Prisão e pé torcido não estavam nos meus planos.
Liguei mais uma vez ao cara do tribunal. Relatei a falta de condições do hospital do exército.
- Vou te encaixar aqui pelo tribunal. - Deu-me o endereço de um hospital. - Depois você me dá uma cervejinha de gorjeta. - Também passou o número da conta bancária. Ao menos deixou ao meu critério o valor da propina.
Fui atendido por um ótimo médico, radiografado, analisado, medicado e instruído:"gelo e repouso". Saí satisfeito pelo bom atendimento. Parece que a mão branca do médico já ajuda a curar. Se não fossem tão corporativistas com seus colegas que cometem erros, protegendo crápulas e escroques, acharia-os uma categoria respeitável. Por enquanto ainda são uns pernósticos.
Voltei para casa com a certeza de que o modelo de Estado em que vivemos não funciona, é insuficiente às classes menos privilegiadas. Os ricos sempre compraram seus confortos, porém a definitiva separação social entre Patrões e Miseráveis dá-se agora nesta estrutura do país. A incapacidade de suprir os menos favorecidos é demonstrada na saúde e previdência aprimoradas aos servidores de carreiras privilegiadas. Ou seja, fica claro que o sistema está pouco se importando com os pobres ao dar aos juízes e empregados dos tribunais, preciosos à sociedade, uma qualidade de vida superior, majestosa em comparação ao resto da plebe.
É claro que todos as agremiações desejam o melhor para si, porém tais benefícios devem ser financiados pelos próprios associados, como em qualquer entidade de classe. Quando o Estado paga as vantagens dos tribunais e, quiçá, do legislativo, em outras palavras avisa ao povo que está protegendo "as pessoas mais importantes do Brasil" e continuará abandonando a população à própria sorte, que quer dizer ao SUS.
- Gritam aos ventos que os hospitais do povo são uma porcaria. - Resmunguei.
- Quem? - Perguntou a patroa.
- As vantagens dos servidores do judiciário e do legislativo. - Mastiguei as palavras. - Enquanto nossos dirigentes, este aglomerado de desonestos, não sentirem na pele o infortúnio que é ser brasileiro e ter que conviver com a opulência em meio à nossa miséria, nada será corrigido. Só quando correr o sangue azul das oligarquias dominantes o Brasil se livrará das verdadeiras amarras da sociedade. - Meu dedo em riste cortava o ar.
- Bebeu? - Ela me olhou. - Tá anarquizando de novo?
Deve ser o remédio, pensei.

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A série Sou Brasileiro e Não Me Orgulho Nunca pode ser encontrada nas Crônicas do sítio
A literatura obscura de Mão Branca

15 comentários:

Giovani Iemini disse...

Seim, eu sei que é grande. Mas basta morder a fronha que tá tudo bem.

MPadilha disse...

Grande sim, mas certeiro também. Teu conto me levou para um dia que tento esquecer. Brasil com tanto para se esquecer. Um dia levei o Di num desses hospitais com o braço quebrado em dois lugares. Colocaram no lugar, o raio x acusou que tava quebrado ainda; colocaram pino, o pino saiu e voltou a ficar quebrado; iam levar para cirurgia pela terceira vez qdo me revoltei; peguei-o, saí até o telefone, chamei um parente e gritei: Socorro! Foram R$ 1.800,00 e um tratamento de primeira. Ele se recuperou rapidinho. Vergonha esse Brasil Gigio. Teu conto é contestador, revoltante e bem brasileiro. Orgulho do Brasil eu só tenho qdo vejo Ronaldinho jogar.Parabéns parceiro. Beijos

Deveras disse...

Dana-se o tamanho, o conto tá muito bom, bem amarrado vai levando a gente junto, com humor irônico e uma dose de contestação, coisas que me satisfazem bastante.

Maneiro, cara.

MPadilha disse...

Hoje sóbria,rss, li mais uma vez e percebi a tua jogada de mestre. Falar de uma MENTIRA, a Saúde no Brasil, no dia da mentira. Muito bom.

Lameque disse...

Não importa o tamanho do texto e sim o prazer proporcionado.
Está ótimo, bem a cara deste País de quinto mundo. Sugiro um plano de saúde.

Só um senão técnico. Os hospitais militares são dirigidos por Oficiais Diretores e não Comandantes.

Saudações e descançar!

i disse...

É, o Brasil às vezes não é mole, não.

Paulão Fardadão Cheio de Bala disse...

Legal, mas excessivamente real. Colocasse boitatás como pano de fundo e eu ficaria mais emocionado.

ofilhodoblues disse...

ficou bom, grande, mas bom
infelizmente essa é a realidade do brasil mesmo

Muryel De Zôppa disse...

gostei mesmo. fico impressionado com a facilidade de um poeta (pois assim o considero) em trabalhar com a língua dando-lhe diversas significações, mantendo o lirismo no prosaico e vice-versa.

Anônimo disse...

"Ou seja, fica claro que o sistema
está pouco se importando com os
pobres ao dar aos juízes e
empregados dos tribunais, preciosos à sociedade, uma
qualidade de vida superior,
majestosa em comparação ao resto
da plebe".

Texto altamente elucidativo.
Parabéns!

Anônimo disse...

Sonho com o dia em que seu relato se torne tão absurdo, que seja considerado fantástico.
E quando será?
Como vc mesmo disse: Só quando correr o sangue azul das oligarquiasdominanntes(...)
Crônica certeira! PARABÉNS!!!

Eduardo Perrone disse...

Crônica da realidade que doí cronicamente. O dono da "bodega" não é fraco não...!

Véïö Chïñä‡ disse...

Dizem que no tempo do Costa e Silva as coisas nao eram tão bagunçadas assim....
Que taus???
hehehe.

E pensar que isso é café pequeno.
hum!

Cesar Zanin disse...

Putz, nem mesmo nos paìses ditos de primeiro mundo a saude està boa...
Acho que o buraco da questao é mais embaixo...
Primeiro mundo nao é para qualquer um (hehe), nao importa onde...
Mas gostei bastante do texto!

Anônimo disse...

Alguém aqui, já viu Sicko? de Michael Moore? O que vocês acharam?