sexta-feira, 4 de maio de 2007

Fábula do Fim do Mundo

As eras do planeta Terra se passaram. O homem, principal criatura que o habitava, conseguiu levar sua civilização ao ápice do conhecimento: viagens a outros mundos, aparelhos que transmitiam sons e imagens, por milhares de quilômetros, veículos de terra, mar e ar, encurtavam distâncias, diminuíam o tamanho do mundo. As doenças acabaram; foram debeladas pelo avanço da ciência. Os homens criaram outros homens, à sua imagem e semelhança: de carne e osso, filhos eram escolhidos de acordo com o gosto dos pais; de metal, os empregados e serviçais da humanidade, até uma mulher virtual (para prever o tempo) vivia constantemente a informar como estaria a atmosfera. Plantas e animais extintos foram recriados graças aos estudos aprofundados da genética molecular, a recuperação de biosferas inteiras vinha sendo efetuada há décadas e os resultados estavam começando a surgir... Até a fragilíssima camada de ozônio vinha se fortalecendo ano a ano. Parecia que o Éden perdido fora reencontrado.
Parecia. Entretanto, outros avanços tinham sido feitos. O poder de matar ainda era controlado pelos homens. Ainda existiam países. Ainda haviam ódios. Então, quando estavam quase trazendo de volta o paraíso terrestre, as portas do inferno foram novamente abertas. Continentes inteiros foram dizimados... A luta foi curta, porém sanguinária. O fogo choveu do céu e em duas semanas não havia mais guerra... como também não havia mais países...
Mas houveram sobreviventes. Contra todos terríveis prognósticos calculados pelos velhos senhores da guerra, algumas vidas não foram ceifadas. Ainda restava um lugar intocado. Recomeçar era possível. Ao se darem conta disto, os remanescentes partiram para lá. Era uma ilha fluvial, a maior do planeta, situada quase no centro de um antigo país abaixo da marca que simbolicamente cortava o mundo em norte e sul.
O último barco apressava-se para sair. Estavam lá os que havia logrado chegar até ali, fugindo da fome e das doenças. Para que o embarque fosse autorizado, deveriam estar sãos e fortes. Para futura harmonia, também deveriam estar equivalentes a quantidade de homens e mulheres. Deveriam estar em pares. Sete pares. Seriam os novos povoadores do planeta, os recriadores da vida.
Mas ainda algo a resolver: estavam em quinze pessoas. Sete mulheres, oito homens. Os últimos, acatando o que haviam acordado previamente, lançaram a sorte para saber quem seguiria em frente. Na escolha final, sobraram dois: um rapaz simples, que não sabia muito ainda da vida e um experiente cientista, versado na maioria das ciências conhecidas, qual seria o condenado. Ao ver que lhe restava como adversário somente aquele simplório, o estudioso tomou a dianteira seguindo para o barco, sendo barrado. Indignado reclamou:
- Como ousam tentar barrar alguém como eu ? Conhecedor das antigas ciências, que domina esses conhecimentos em grau maior que qualquer um de vocês ! Não vêem a falta que meu intelecto fará à nova comunidade ?
- É justamente por isso – Explicou o recém empossado chefe da expedição – que você será preterido pelo rapaz... Tens um conhecimento muito maior que o nosso... mas um conhecimento do mundo antigo. Foram estes conhecimentos que nos trouxeram até este ponto. Precisamos reaprender. Juntos, para criarmos um mundo diferente daquele que conhecíamos... Precisamos redescobrir o saber, mas somente o saber que cria, não o que destrói... Adeus.
O cientista observou o barco zarpar... Sentou-se e fez mentalmente os cálculos de quantos dias agüentaria antes de morrer de inanição...

6 comentários:

ofilhodoblues disse...

Cris, espetacular. A condução lógica está perfeita... paraíso, inferno e recomeço... e uma bela mensagem...

o bom do blog é que até mesmos os já bons escritores do boteco superam a si mesmos...

parabéns!

Paulão Fardadão Cheio de Bala disse...

Legalo. Meio moralista, meio nazista, mas legalo em vários pontos.

Muryel De Zôppa disse...

suspeito por ser fãn, ainda teimo em elogiar: excelente narrativa. gostamos, eu e o outro.

Lameque disse...

Hehehe... Se o mundo acabar desta meneira, irão acabar entrando no barquinho aqueles que puderem subornar alguém que ainda esteja vivo para ser subordado, mesmo que não haja mais lugar para gastar com o da cervejinha.

Texto interessante, ainda que um tanto pessimista

Deveras disse...

Valeu gente. Na verdade, gostaria que o mundo acabasse em barranco para morrer escorado.

fiquemnapaz!

Eduardo Perrone disse...

Um texto cético. Escrito pelo Cris... O que, de certa forma ,demostra o valor da pena do autor.
A narrativa precisa, encontra vários ecos nas suspeitas de erro-de-rumo. que, todos nós, entimos.
B.O.A!!!!