Os pensamentos flutuavam enquanto ela trancava a porta e saia ligeiramente atrasada para encontrar um bonitinho, mas ainda sem pressa. Mal e mal pensava – eram as idéias que despontavam dos fiapos de sensação. Digo, aquela texturinha saliente na porta, como houvera acontecido? “É a ótica do ouvido”, se dizia e ouvia e repetia, na mesma entonação intelectual a qual escutara noite atrás em um bar café. Não entendera o sentido, mas, impiedosa, a frase deixara-lhe os dentes: martelava-lhe a cuca ali, logo assim que a mente descansou. Happy Hour dos neurônios – riu debochada e seguiu para o elevador.
Mas, não sem antes passar pelo corredor, quando reparou numa garoa fina e saiu do transe.
– Chuva de novo, merda! Espremeu os olhinhos de jabuticaba para confirmar as gotas, mas não houve tempo – no plano de fundo havia um prédio, no prédio havia janelas e em uma delas havia um gato branco –: abstraiu-se novamente.
Um espírito de porco foi o que a conduziu ao devaneio outra vez. Já nem se lembrava do atraso, só queria levantar o gato dali. Queria pois queria, não era ato de salvação, era desejo latente de cruzar a vida do bicho e, quem sabe, causar certa mudança – pura crise de Amelie Poulain. Maldade não era, mas bondade tão pouco podia ser: era o sétimo andar – um fôlego pra cada andar, se é que ele ainda tinha os sete. E se o bichano caísse dali? Ela que não se passasse por desavisada – sei bem que ela ponderou a cena.
Mordiscou e sugou o lábio de baixo, dando um estalinho de desfecho. Aí, puxou os cabelos para trás e olhou para os lados: ninguém a vista, ela podia se divertir. Fitou o gato sentado e parado e ainda sem movimento, paralisou-se também, como uma serpente que se prepara ao bote, e – RÁ! –, gritou abrindo os braços e as pernas em um pulo pra frente. Como diz o outro, nem um piu do gato, que a fitava de volta. E nem se soubesse piar, o atrevido continuava insosso. Reconstitui-se a mulher, fez que não fez nada e, em um girinho, viu que não viram o que ela havia tentado fazer.
Safado, disse quem dos dois sabia dizer, e não se deu por vencida. Fingiu que pegava algo no chão e tomou fôlego e um pouco de distância para tacar. Bicharia é tudo igual e, ora, se a técnica funcionava com pombos, não havia razão para esse bichinho caseiro negá-la. Em gestos largos, projetou a mão esquerda para frente na linha dos seios e a direita para trás e para o alto, ambos os punhos cerrados. Apontou o pé esquerdo para frente e, num raio de movimento, jogou nada no gatinho. Nada obteve, nem esboço de reação do ferrenho animal que nada entendia.
Ah, mas agora a revolta pululava e que se danasse o gatinho que lhe esperava no encontro marcado. Ela faria aquele felino sair da janela, causasse o que causasse, custasse o que custasse. Tomou de mãos trêmulas a chave do apartamento e a meteu na fechadura quase errando de mira, tão nervosa estava. Abriu a porta no empurrão e seguiu em direção ao quarto, deixando escancaradas as portas e a bagunça por onde passava.
Procurava uma bolinha, um pedregulho, uma flecha, um tijolo, mas uma meia de frio enrolada lhe coube bem entre os dedos. Pegou três de uma vez, sabia que força e mira não combinavam bem e que, se dependesse da paciência para voltar e buscar mais, atirava-se ela mesma no infeliz. Nunca alguém havia sido tão indiferente com ela e jamais alguém voltaria a ser. Voltou sem fechar as portas que havia aberto na busca da arma e alinhou a munição uniformemente na sacada: verde musgo, preta e marrom – cores de guerra.
Fez piedade da primeira bala. Atirou-a próximo à janela, de propósito, num surto de receio que lhe deu de machucar aquele pacífico ser. Bola bateu, caiu e quicou, enquanto o gato a olhava paralisado, sem entender o porquê daquilo. Ela, tiritando de raiva, desistiu de dar chance: pegou a bola verde musgo e, sem rodeio, acertou-lhe de uma pedrada só – TUM! E foi assim que acabou o júbilo do bicho branco, que bateu com a cabeça no vidro da janela e voltou para frente, despencando sete andares com a falta de expressão característica dos gatos de pelúcia.
Fez piedade da primeira bala. Atirou-a próximo à janela, de propósito, num surto de receio que lhe deu de machucar aquele pacífico ser. Bola bateu, caiu e quicou, enquanto o gato a olhava paralisado, sem entender o porquê daquilo. Ela, tiritando de raiva, desistiu de dar chance: pegou a bola verde musgo e, sem rodeio, acertou-lhe de uma pedrada só – TUM! E foi assim que acabou o júbilo do bicho branco, que bateu com a cabeça no vidro da janela e voltou para frente, despencando sete andares com a falta de expressão característica dos gatos de pelúcia.
Matheus Costa
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4 comentários:
Gostei no geral, mas tem alguns detalhes que vou ter q reler pra entender direito, acho.
Parafraseando o Piu-piu: "Acho que já vi esse gatinho..." (Talvez nas prateleiras das Lojas Americanas).
Belo conto Matheus. ficanapaz, brow!
Questão de ordem. Se fosse um gato de verdade, será que ela teria coragem?
Muito bom!
Lameque, ela pensava que o gato era de verdade.
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