Por que alguns escritores são chamados de malditos
“Uma coisa é escrever como poeta, outra como historiador:
O poeta pode contar ou cantar coisas não como foram,
mas como deveriam ter sido,
enquanto o historiador deve relatá-las não como deveriam
ter sido, mas como foram , sem acrescentar ou subtrair da
verdade o que quer que seja.
Cervantes “D. Quixote de La Mancha”
Eram por volta das quatro da tarde quando ele chegou. Haviam marcado às três e meia. Tudo aquilo o deixava meio desconfortável, mas fora idéia de seu editor e no fim viu que teria realmente que comparecer. Ela estava sentada no fundo do bar, olhando impacientemente para o relógio. Parou do lado:
- Desculpe o atraso – sorriu meio sem graça.
- Tudo bem, em geral meus entrevistados não se importam em se atrasar, nem em se desculpar. Muito prazer, meu nome é Lílian.
A vista daquele rosto perfeito e os cabelos louros o deixaram mais desconcertado ainda, tinha um fraco por louras (será que isso também fora coisa lá da editora?), ficou ali em pé olhando-a, que prosseguiu:
- Escute, em primeiro lugar gostaria de te agradecer por me conceder esta exclusiva, sei que você anda muito ocupado.
Essa era a última coisa que o acontecia ultimamente. Estar ocupado. Lançara um livro que foi bem recebido, estava agora simultaneamente empacado com o segundo, terceiro e quarto, gostava de escrever várias coisas ao mesmo tempo. Enquanto não adiantava os outros, enviava uma enxurrada de contos para as revistas; tinha que defender o seu pão, ou a cerveja, tanto faz, mas o certo é que não escrevia nada há semanas (os textos foram escritos faziam meses) e por conta do recente sucesso, choviam convites, então vagabundeava de festa em festa, se apresentando com um pseudônimo. Não tinha saco para bajulações nem sabatinas. Sentou-se e sacou um cigarro.
- Certo, por onde começamos?
- Você é quem fez faculdade de jornalismo, me guie.
- O.K. Como é quebrar o recorde da lista dos “dez mais”?
- Nunca me imaginei nem em ser um deles.
- Como começou a escrever?
- Escrevendo.
- Tipo, no colégio?
- Não, tipo em casa.
- Por quê?
- Não havia mais o que fazer.
- Como um rapaz de Goiânia vira escritor?
- Como uma garota do Rio vira jornalista?
- Como sabe que sou carioca?
- Pelo “excritôar”. Mas foi chute.
Ela riu gostoso. Tinha uma dessas risadas fáceis, que fazem com que a gente queira rir também. Dentes muito brancos, olhos claros e lábios finos, uma aparência meio germânica, talvez herança de algum avô alemão. Mas sua classe era a de uma francesa. O jeito com que ela fumava com uma mão e segurava o minúsculo gravador na outra. Seu indolente cruzar de pernas, podia jurar que ela conseguiria cagar de pernas cruzadas, tamanha era sua etiqueta. Ele sempre fora um suburbano qualquer, começou a escrever desempregado para não enlouquecer pela falta do que fazer e agora estava ali, sentado em um bar no Arraial D´ajuda (sempre se prometera que se ganhasse dinheiro moraria ali pelo resto da vida), com uma mulher que queria perguntar de sua vida. Profissionalmente, o que era uma pena.
- Olha – disse ele após elas se controlar – acho que começamos meio depressa, sei lá. Que tal se tomarmos algo e deixar o papo fluir, hein?
- Estou de serviço... Só os escritores podem se dar ao luxo de beber em uma Segunda-feira...
- Mas não é uma policial, nem seu chefe está aqui, o que é uma benção... GARÇOM! Preste bem atenção, um copo de gelo e limão, um com uma dose de gim, uma água tônica, uma cerveja e...- virando-se para a moça- cerveja ou tequila ?
- Cerveja, mas só para te acompanhar...
- Ótimo, se apresse meu rei, traga tequila que essa matéria vai para a lista das “dez mais”... – a repórter riu de novo, balançando a cabeça. Ficaram comentando sobre pequenas particularidades, apenas para se conhecerem melhor, mais à vontade, as perguntas e respostas fluiriam com mais facilidade:
- Diga aí – ela disse – meu redator disse que você não era chegado em uma entrevista, por que aceitou?
- Foi meio que um acordo que fiz com meu editor... Ele precisa de publicidade, eu de privacidade... E prometeu não me cobrar nenhuma linha dentro de três meses, então eu disse que se a entrevista fosse aqui e fosse com uma jornalista... Nem precisava ser linda.
- Por que aqui?
- Sempre quis morar na praia. Quando você mora no interior e fica vendo aqueles filmes de surfistas ou aquelas cenas a beira mar... Acho que é aquele negócio da insatisfação humana. Se o cara mora em uma montanha, no meio do gelo, quer ir para a África, algum lugar quente, sei lá. Se mora no agreste, desejaria estar tremendo de frio em Londres e por aí vai num crescendo.
- Como assim?
- Se ele possui um carro comum, gostaria de ter uma Ferrari. Se têm a Ferrari, vai querer um iate... Daí para um jatinho é um pulo... Não me lembro quem disse que “o ser humano é um eterno insatisfeito”. Eu concordo plenamente.
Os drinques chegaram, Amarildo, o garçom, ajeitou tudo da maneira costumeira (como é cheio de manias esse cara, pensou), enquanto falava ele enfileirou os copos de gelo e limão, o gim e o da cerveja, deixando entre eles a água tônica e a tequila.
- Pronto, esta (apontou a tequila), é sua...
- Mas eu só concordei com a cerveja.
- Beba a tequila primeiro... Só para aquecer... – e começou a misturar os outros copos: gim, gelo, limão e água tônica – voilá, gim tônica... Meu predileto. Junto com a cerveja e o whisky, claro...
Ela olhou desafiadoramente para ele, levantou o pequeno copo e atirou o líquido boca adentro.
- Uau, ISSO É UMA SENHORA GOLADA!!! – ela havia virado a tequila sem nenhum acompanhamento – pronto, agora tome um pouco de cerveja, sua garganta vai agradecer...
- Uhhh! Faz tempo que não tomo uma... Glup... assim... – a voz dela havia ficado um pouco macilenta – que tal voltarmos à entrevista?
- Ué, não é o que estamos fazendo?
- Estamos bebendo, só isso.
- E conversando, o que quer dizer que você está me entrevistando.
- Tudo bem... Você é bem convincente.
- Eu tento.
- Quais suas maiores influências?
- Os de quase todos, Hemingway, Poe, Bukowski, sei lá. Desde adolescente curto muito Verne, Rimbaud, Kerouak.
- Só literatura estrangeira? E os nacionais?
- Bom, adoro o Fernando Pessoa.
- Ele é português.
- Eu sei e daí?
- Daí que é literatura estrangeira também.
- Não acho. Ele é de casa, primo, sabe? Escreve em nossa língua, ou melhor, nós escrevemos na dele. Mas se você quer que cite alguns made in Brasil, vai lá: têm o Sabino, que é sensacional, o Scliar, os Veríssimo, pai e filho cada um na sua, detonam; Clarice Lispector (que era ucraniana de nascimento), Cecília Meireles, Bernardo Élis, Cony, o Joelmir Betting, que escreve sobre economia, mas dá uma aula de redação; caramba, o Armando Nogueira fazendo verso e prosa com resenhas esportivas, pôxa, são tantos que eu nem sei quais ao todo.
- Quer dizer que você pega um pouco de cada?
- Sim e não. Acho que todos que escrevem aqui no Brasil, depois de Machado de Assis, têm um pouco de Bentinho em si. Não dá para desassociar, sabe? Temos um quê de Viramundo, Capitão Rodrigo, Chico Bento, Cebolinha, Rê Bordosa... Eles são a cara do brasileiro, a cara do ser humano... Mas sempre há aquele pedacinho teu que você pode acrescentar neste tempero.
- Te enquadram como sendo um escritor maldito. Se acha um?
- Não sei... Os ditos malditos eram sempre marginalizados, coisa que não me acontece exatamente. Talvez só por andar realmente uns dois passos da estrada, sempre entre outros que não se incomodam muito em serem eles mesmos. Nem se preocuparem quem ganhou o Oscar ou se saiu na capa da revista... (olhou-a diretamente nos olhos, viu que agradara).
- Pelo jeito, também é contra as regras da sociedade.
- Só as idiotas. Você estaria vestida neste momento não fossem as convenções da sociedade?
Quando rebateu a pergunta, inclinou-se para frente, ficando bem próximo do rosto dela, podia sentir sua respiração delicada, o doce aroma de seu perfume, o colo bem delineado, a sensação de maciez de sua pele. Ela corou imediatamente:
- Dizem que os malditos são grandes galanteadores. De homens ou mulheres, tanto faz.
- Eu sou da turma dos antiquados, plug com conexão, encaixe perfeito, sem sobra de fiação, entende?
- Têm algum preconceito contra os homossexuais?
- Acho que eles é que têm contra mim... Se não ligo muito nem para minha vida, para quê vou gastar tempo se alguém está se relacionando com um bode ou uma árvore? É perda de tempo simplesmente. Não estou aqui para servir de júri ou juiz de quem quer que seja. Faço meu pequeno papel neste planetinha, mas não vou virar mais uma marionete se o mundo inteiro virou um circo.
- O que quer dizer com isto?
- Que estou meio bêbado... Quando ficarmos completamente tontos, tudo fará sentido...”in vinus, veritas”
- “No vinho, há a verdade” – ela traduziu.
- Você concorda então que os antigos romanos deveriam ter alguma razão.
- Bom – deu uma risadinha – Na verdade eu li essa citação creditada a você, na coluna do Eustáquio...
- Nem tudo está perdido, afinal. Vamos tomar mais umas cervejas e verei se você têm salvação...
- Do purgatório?
- Não, deste circo de pulgas...
Cinco semanas depois estavam casados. Ele, com livro novo, ela desempregada, pois nunca voltou nem para entregar a entrevista, nem para dar uma explicação convincente, sendo demitida aos berros pelo telefone. Até o nascimento da primogênita, ela o achava um grande escritor, após o parto do segundo, estupendo e depois de abandonada grávida do terceiro filho (trocada por uma jornalistazinha da imprensa marrom), sempre que perguntavam qual sua opinião sobre o que achava dele, respondia com fogo nos olhos:
- É um maldito filho da puta...
E olha que este é só um dos motivos.
9 comentários:
o conto é fera, muito bem escrito, inteligente, pois fez uma entrevista consigo mesmo, citou quase todas as minhas referências, inclusive Maurício de Sousa e o fato de ser do interior do brasil e sempre sonhar com o mar.
gostei. beatnickiano.
mas... "E olha que este é só um dos motivos." ficou feio. ela explica o conto. para quê?
- Tira, tira, tira...- gritava a torcida.
fera. gostei muito
aeaeiheiuehaiuhaeae
mto bom, apesar de lembrar muito as entrevistas do velho safado, mas ficou mto bom
fçlew!
"- Eu sou da turma dos antiquados, plug com conexão, encaixe perfeito, sem sobra de fiação, entende?"
Isso não é maldito. É cafajeste. É muito cafajeste. É genialmente cafajeste.
Li com prazer. Dividi a mesa na hora da entrevista. Olhei as pernas cruzadas e senti o hálito da jornalista.
Muito bom.
Eu concordo com o Mão, tira o final e terá uma conto perfeito. Me arrepiei aqui, tem história, rola química, sedução própria dos escritores, sempre envolvidos com a fantasia. Eu me identifiquei do começo ao fim, tirando o filha da puta, que não concordo,rss. Parabéns Cris, tu arrebentou com esse, melhor que o Jantar das 11, com certeza. Beijão.
Cris.
Dizer que é um conto espetacular seria chover no molhado.
Li do começo ao fim sem me dar conta do tamanho do texto, sinal de que ele prende a nossa atenção. A narrativa está rechada de ínumeras referências e reflexões sobre a vida e a arte de escrever. Não é á toa que se trata de um escritor sendo o entrevistado.
Eu só trocaria o "redator" por "chefe de reportagem".
Noata 10.
Vc, Cris, também o é!
O texto é genialidade pura. A narrativa envolvente. E o FDP que há "nele" , também nos habita.
Ou seja. Quase que dá para ser "coletivo-auto-biográfico"...rs
ainda me impressiono com o que escreve? cara, textos assim devem dar um trabalho...
menino, sou sua fã... é ler-te e me encantar, mas esse tinha passado batido. bom que hoje tive tempo de maravilhar-me.
beijo grande!
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