domingo, 8 de julho de 2007

A velha Mocinha


"As trevas da mocidade cobrem de ignorância os sentimentos mais nobres e, no transcorrer cadavérico dos anos, as mãos tremem e afagam a face estapeada pela ingratidão. Mesmo aquele sorriso infante, teu orgulho de mãe, como uma flor esquecida, murcha e morre lentamente..." (Rebellis, Eduardo Borges)

Era uma velha baixinha, ossuda, de pele escura e um pouco encurvada. Aparentava bem mais do que os seus sessenta e seis anos. Parecia carregar o peso do mundo em suas costas magras, mas não se dava conta disso.
Mocinha vagava ao acaso pelas ruas, pedindo uma esmola aqui, outra ali. Usava um vestido preto e opaco, testemunha fiel de seus dias gloriosos de outrora. Nos olhos azuis brilhantes agora pairavam densas nuvens de tristezas e sofrimentos; nos cabelos amarelecidos pelo tempo outrora bem tratados trazia um lenço sujo e rasgado achado numa lata de lixo; as mãos antes sempre bem cuidadas, agora se exibiam enrugadas e trêmulas.
Em nada lembrava aquela Mocinha alta, de pele clara, cheia de vida, bem casada e com dois filhos maravilhosos, que havia sido nos melhores anos de sua existência. Todos haviam partido sem se despedir dela. Entretanto o momento mais marcante de seu passado ainda permanecia vivo em sua memória. Jamais esqueceria aquela noite de festa e alegria. Era o casamento de seu filho mais novo, o André.
Mocinha empenhara-se durante seis meses para dar ao filho e à nora aquela festa inesquecível. Cuidara pessoalmente de todos os detalhes. Sempre fora reconhecida na sociedade pela sua finesse e bom gosto para organizar festas e recepções. Queria que o filho tivesse orgulho dela. E a nora também, apesar da antipatia que uma nutria pela outra.
Mas ultimamente vinha-se sentindo um pouco cansada demais, esquecida de pequenos acontecimentos de seu cotidiano e notara um ligeiro tremor nas mãos, que atribuía ao nervosismo com os preparativos do enlace matrimonial de seu caçula. Era natural, pensava ela, pois afinal ia entregar mais um filho a outra mulher. O filho a quem aprendera a amar, cuidar e proteger em seu ventre depois de três abortos espontâneos seguidos. Mas ela insistira, apesar de todas as conjeturas negativas levantadas pelo médico. Seu útero tinha grandes dificuldades para segurar um feto, mas Mocinha contra todas as limitações impostas pela natureza desejava sentir as dores do parto e conhecer a sensação de ser mãe.
Fora uma vitória para ela quando vira a bolsa romper dentro do prazo previsto pelo médico e correra ao hospital com o marido para dar à luz. Mais feliz ainda se sentira ao constatar que o filho era perfeitamente saudável, robusto e lindo. Da mesma forma que Jorge, o primogênito. Ambos eram o melhor presente que Mocinha poderia ter recebido na vida. Amava-os de todo o coração como seus bens mais preciosos. Desejava para eles a mesma felicidade que experimentara ao vê-los sair de dentro de seu ventre.
Mocinha escolhera cuidadosamente o vestido daquela noite. Sempre gostara de preto, apesar de toda a superstição que envolvia a cor, principalmente em cerimônias como o casamento. Bobagem, pensava ela. Não compartilhava desses pensamentos e como uma mulher avançada vivendo em pleno século vinte deveria deixar para trás essas tradições antigas. Também não poderia ofuscar a noiva, embora ela bem merecesse, especulava Mocinha em seu íntimo. Como ela ousava roubar-lhe o filho a quem criara com tanto amor?
Mas não era hora de pensar nisso. O certo é que deveria se conformar, visto que já perdera o marido em um desastre de automóvel e Jorge, que se casara dois anos antes, agora vivia na Europa e não pudera comparecer ao casamento do irmão por motivos profissionais. Talvez devido ao nervosismo que a acometia, sentia-se nessa noite ainda mais trêmula que o habitual e não notara os sapatos trocados que calçara. Olhara-se ao espelho para conferir a maquiagem. Estava divina. Seu rosto havia adquirido ainda mais luminosidade com aquela nova cor de cabelo e o penteado sugerido pelo seu cabeleireiro. Os olhos escondiam uma centelha de tristeza pela perda do filho para aquela mulher a quem havia de considerar como parte da família dali para frente.
Precisava descer para rever os últimos detalhes. Os convidados já deveriam estar chegando à mansão. O casamento fora marcado para as vinte horas daquele sábado de maio. E de fato os salões principais já se encontravam tomados. Mais de quatrocentos convidados. Do alto do mezanino podia ver o filho postado diante do altar, aparentando um pouco de frieza, mas ansioso por dentro. Correu para tomar seu assento na primeira fila. A marcha nupcial encheu o ambiente. Ninguém pareceu reparar em seus sapatos trocados.
Sentia-se um pouco tonta e fraca devido ao pequeno esforço que fizera para chegar ao altar. A noiva vinha a passos lentos sobre o tapete vermelho. As damas de honra iam à frente demarcando o caminho. Mocinha acompanhava com o olhar perdido. Aos poucos as imagens que presenciava foram tornando-se opacas e sem viço diante dela e tudo começou a perder a cor, inclusive ela mesma, sentindo o corpo desabar de encontro àquele chão frio. Era tudo o que podia se recordar.
Três dias depois acordara em um sanatório. Esperara dias, meses, anos por Jorge ou André. Mas eles nunca mais apareceram. Nunca mais lhe enviaram notícias. Nunca mais se lembraram dela. E agora se encontrava ali naquela manhã cinzenta de outono. Ali naquele beco sujo e imundo catando sobras de uma vida digna. Se ganhava comida ou cama para dormir, sorria satisfeita e balançava a cabeça em agradecimento. Se ganhava algumas moedinhas limitava-se a contá-las e guardá-las no bolso. Se não lhe davam nada, Mocinha seguia em frente sem reclamar, mas com uma única esperança em seu coração após a fuga do sanatório: rever os filhos a quem tanto amor dedicara.
(Alessa)

3 comentários:

MPadilha disse...

É Alessa, triste, mas comum. Vc abortou uma questão que lota os asilos de nosso país, o abandono, com inteligencia e talento de quem sabe. Gostei.

Klotz disse...

Espero, de coração, que seja ficção. É muito real e triste. Não desejo este final de vida para ninguém.
Belo texto e bem desenvolvido.

Rebellis disse...

Um das histórias mais tristes que já li da Alessa e, todavia, uma das mais belas...