Sinto tudo rodar. O suor escorre na minha cara, faz os meus olhos arderem, lava o meu corpo-fechado no terreiro da dona Constância. Aqueço saltitando na ponta dos pés. Minha imagem se multiplica nos espelhos que uso para fazer o aquecimento. Fotógrafos, jornalistas e puxa-sacos de todo tipo se acotovelam na porta do vestiário. Nunca me senti tão sozinho. Vou fazer história com o meu cruzado de direita, passar o rodo no fulano, sentar ao lado dos três reis magos: Sugar Ray, Mohammed Ali, George Foreman. O treinador me chama num canto. Repete um montão de baboseiras: cuidado com a canhota do fulano, cuidado para o fulano não te acertar o baço, cuidado para o fulano não te imprensar nas cordas. Cuidado, cuidado, cuidado. Vixi, já enfrentei muita coisa nessa vida: miséria, Febem, meganha. Nunca tive refresco, mas estou aqui, de pé, para fazer o dito-cujo beijar a lona.
O Dão, auxiliar do treinador, observa tudo sem dizer uma palavra. De vez em quando, balança a cabeça em sinal de concordância e passa o pano sujo para tirar o suor da careca. Confio mais nele que no treinador. É um preto velho alagoano, ex-lutador, misto de gordo e forte. Não chegou a conhecer a glória, mas a desgraça volta e meia batia em sua porta. Perdeu quase tudo em cima dos ringues. Perdeu o baço, perdeu a metade dos dentes, perdeu por pontos para a vida. O nocaute técnico veio no fim da carreira: lutava em troca de comida. Até que topou com um conterrâneo de São Luís do Quitunde na subida da Augusta, que o convidou para participar dos telecatches da antiga TV Excelsior. Ganhou uma fantasia prateada, um camarim para dividir com mais oito marmanjos e o direito de distribuir sopapos de mentirinha em quem bem entendesse. Apesar do cachê minguado, estava feliz. Mas a alegria de pobre, sabe como é. Levou um pé na bunda sem mais nem menos. Aí arranjou essa boquinha de auxiliar do treinador. O Dão me viu passando uma descompostura num fulano e me levou para treinar num galpão na Barra Funda. Me deu casa (o próprio galpão), comida, respeito e muita sapecada nos treinamentos. É o pai que eu não tive.
O treinador não pára de fumar. A nuvem espessa formada à sua volta não consegue encobrir o seu nervosismo. Mais parece uma maria-fumaça ziguezagueando de um lado para outro. Ele nem sonhava que eu disputasse o Sul-americano. Decerto imaginou que eu fosse passar a vida toda batendo nos sacos de areia naqueles galpões sujos. Um cara narigudo aparece no vão da porta e avisa: é hora da carneação. A frase tem efeito imediato sobre o treinador, que arregala os olhos e acende um cigarro no outro. É um cagão mesmo. Isso só faz a minha confiança aumentar: vou guindar o fulano dentro da casa dele.
O Dão termina de enfaixar as minhas mãos. Sinto consistência nos punhos e raiva no coração. Calço as luvas e levanto a guarda à altura do rosto. Admiro as minhas mãos encobertas pelas luvas. Uma marretada dessas mói o maxilar de qualquer sujeito. O roupão de cetim vermelho cobre o meu dorso nu. O Dão vai à minha frente abrindo caminho. Ponho as mãos em seu ombro, cabeça protegida pelo capuz, vou pulando para não perder o aquecimento. Mal apareço e a torcida do cara me vaia. Passo pelas cordas, subo no tablado, dou uma volta inteira com os braços erguidos. As luzes escurecem a minha vista. Puta merda, gringo acha que tudo na vida é bróduei. Ainda mais os argentinos. Eles se acham a última coca-cola gelada do deserto. Tiro o roupão, exibo o meu corpo crivado de músculos. Chego a brilhar. Nenhuma pelanca sobrando. Olho para mim mesmo cheio de orgulho. Bato com as duas mãos no meu peito e grito coisas sem sentido. A minha provocação é respondida imediatamente. Vaias, vaias, vaias. O barulho é ensurdecedor. Eles vão ter de engolir os uivos; o fulano, os dentes.
O Dão coloca o banquinho no córner. Me manda sentar. Ele segura a minha cabeça com ambas as mãos, encosta nossas testas. Sinto o seu hálito de café e cigarro. A voz pausada dá conselhos enquanto as suas mãos grossas desferem tapinhas na minha cara.
“Prepara com a canhota e detona com a direita”, ensina, caçando com as pupilas negras possíveis reações no meu rosto. “Faz o gringo sambar. Só não fica parado na frente dele, senão você vira mingau”.
A pálpebra do seu olho esquerdo não pára tremelicar. Efeito colateral dos diretos de direita que recebeu no meio da cara.
“É bater e rodar, bater e rodar, me entende. Não deixa o cara diminuir o espaço”.
Cada alerta correspondia a um tapinha.
O juiz se aproxima, segura o meu queixo com uma das mãos e manda o tirar o excesso de vaselina do meu rosto. O Dão sorri e obedece imediatamente. Mal o cara dá as costas, ele volta a emplastrar o meu supercílio. Malandragem, malandragens. Só sabe quem gastou a vida em cima dos ringues.
O juiz chama os lutadores para o centro do tablado. Coloca frente a frente eu e o fulano. Por alguns instantes, cada um experimenta os seus medos no outro: sangue nos olhos.. Blablablá, blablablá, blablablá. Vou soltar o braço no fulano. Blablablá, blablablá, blábláblá. Vou fazer o fulano gramar. Blablablá, blablablá, blábláblá. Vou ganhar do fulano na casa dele. Blablablá, blablablá, blábláblá. O fulano vai aprender que a rapadura é docinha, mas não é mole, não. Blablablá, blablablá, blablablá: esse juiz fala mais que taxista numa corrida daqui para Itaquera. Depois faz um sinal com as mãos para cada um ir para o seu canto. Uma boazuda dá a volta no ringue segurando a placa do primeiro assalto. Sinto um puta frio na barriga.
Soa o gongo. O cara vem bufando para cima de mim. Acompanho o seu cerco pelo vão da minha guarda, dou dois passos para trás, sinto as cordas comprimirem as minhas costas.
“Faz o gringo sambar”, a voz do Dão lateja na minha cabeça.
Faço um pêndulo, gingo, deixo o fulano a ver navios: fui criado no samba. O dito-cujo não dá refresco. Quer se aproveitar do fato de lutar em casa. Não perde por esperar. Giro no sentido horário. Inverto a passada. Volto ao sentido inicial: o olho do cara posto em cima de mim. Negaceio com a cabeça para um lado e para outro. Tento encaixar a minha canhota, que explode na guarda do fulano. Na seqüência, solto a direita. O cara dá um passo para trás, ela passa no vazio. No contragolpe, ele acerta uma direita na ponta do meu queixo. Durei só vinte e três segundos. Escuridão.
“Bora acordar, chegou o dia da grande decisão do sul-americano, bora acordar”, diz o Dão, ensaiando um sorriso com os poucos dentes que lhe restam na boca. Abro os olhos sonolentos. Sinto tudo rodar.
são paulo, março, dois mil e sete.
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3 comentários:
Bom, Paulo. Não que haja semelhanças, mas teu texto me lembrou 'O Desempenho' do mestre Fonseca.
Queixo de vidro porra!
Legal, gostei, tanto preparo pra nada. Mas é isso mesmo. Eu adorava assistir as lutas livres, me divertia muito, era minha ocupação preferida na infância. Parabéns.
este conto é vivo como uma soco na cara. ótimo, paulinho!
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