terça-feira, 3 de junho de 2008

O Homem Santo - Juliano Guerra




No templo, uma mulher se retorce ao som dos urros da platéia entusiasmada e eu, no meio da maior abstinência da porra do hemisfério ocidental, fico vigiando a saída pra mendigar alguns incautos. Esses crentes de merda nem pra fiar um trocado. Os olhos do homem santo não raro cruzam com os meus, mas, envolvido que está no exorcismo de plástico, me ignora solenemente.

Mais tarde, enquanto ele chacoalha a rosa na minha frente, Nina vai fazendo os ganhos. O que dá, enquanto as pétalas vão caindo e o santo homem me açoita entoando sua liturgia nababesca. Umas fotos de família na parede até que o humanizam: o nojo ainda me mela a boca, mas o asco propriamente dito já pode ser sublimado com boa vontade e a velha filosofia do olho no prêmio.

Nina me espera do lado de fora da casinha, muxoxos & rebeldia pra viagem. O santo homem me baba o pescoço – lesmas ficam nauseadas de uma costa à outra. Esse é meu exorcismo às avessas, deixo os demônios entrarem com suas marchinhas de duplo sentido. Deixo também o esmalte preto das unhas de Nina escorrer pelo platô até formar uma poça. É aí que o homem santo me batiza.

Recebo a paga do dia por me deixar abusar. Seria mais difícil se eu não tivesse vendido minha alma para uma seguradora. Tomo um banho de água quente com sal grosso, cantigas de ninar ressoam. Nina escapa do meu abraço pra arrumar as colheres, depois me chama. Aplicamos um ao outro o remédio, encostamos nossos pés sob o cobertor paranóico e nascemos.

*a imagem acima é "O martírio de São Pedro", de Caravaggio.

3 comentários:

Deveras disse...

Já conhecia este de outro carnaval, mas isto não diminui a apreciação; sabe entrelaçar bem as palavras e manter a linha da prosa. Detalhe especial para o final do conto.

ficanapaz

Muryel De Zôppa disse...

muito bom este, cara.

Rita Medusa disse...

apaixonante teu discurso
sempre