Não foram divulgados detalhes sobre o episódio, mas presume-se que a ABL tenha tido a ajuda de um certo mago para trazer o clássico personagem de volta à baila.
Policarpo ressurgiu de manhã, já estranhando de início o que via em volta. Nada mais natural, pois Lima Barreto o colocara na cidade do Rio de Janeiro em fins do século 19.
Saindo com um grupo de escritores para passear pelas ruas do seu Rio, não gostou nada do que viu.
— Bando de gente maluca! Quase nos atropelam com essas carroças de metal e sem animais! Como os cocheiros as controlam?
Enquanto se dirigiam para um parque, lugar mais tranquilo para conversar, explicaram-lhe sobre o desenvolvimento automotivo no decorrer das últimas décadas.
— A cidade está mais desenvolvida, não acha?
— Eu diria mais barulhenta e desorganizada. — respondeu, já perdendo o humor.
— Caro Policarpo — continuou um jovem poeta, talentoso, mas carente de bom senso — és dos personagens mais patriotas que o Brasil já conheceu. Poucos estudaram nossa pátria com tanto amor e competência, não por acaso, tornou-se um clássico na literatura nacional. Por isso te chamamos, para, quem sabe, ministrar um workshop para novos personagens...
— Um o que?? — perguntou Policarpo, estranhando aquele dialeto.
— Uma palestra, um curso. — respondeu outro.
— Bem... sabeis que o Brasil sempre foi minha paixão. O respeito à sua natureza, a sua língua, a sua gente, sempre permearam minha conduta. Terei sim prazer em orientar as novas gerações de personagens. Mas, por ora, encontro-me faminto. Há alguma taberna próxima?
— Sim. — respondeu o jovem poeta —, mas hoje em dia chamam-se restaurantes; ou fast-food, como preferem outros.
— Fésti fud?? Que diabos é isto?
— É comida rápida, em inglês. O pessoal daqui acha elegante a língua de Shakespeare.
— De fato, tem suas belezas. Mas, se não me levaram à sério na proposta de se ensinar o tupi nas escolas, deveriam pelo menos preservar a língua de Camões, também encantadora.
Por fim, resolveram levá-lo numa lanchonete, lugar geralmente mais calmo na hora do almoço, já que Policarpo ainda estava visivelmente incomodado com a enorme quantidade de gente nas ruas. O jovem poeta deu a idéia: levar o velho personagem para lanchar em um shopping center.
Lá dentro, depois de passar em frente de lojas como Golden Joalheria, Kings Coffee e Woodstock CDs, chegaram a praça de alimentação.
Apresentaram ao ufanista Policarpo... o Mc Donalds...
— Róti dóg, xis burguer... Que diabos de comida é essa, senhores?
— Não se preocupe, Policarpo, o nome pode ser estranho, mas o lanche não é ruim.
— As sardinhas da Taberna do João me pareciam mais apetitosas. E pelo menos dava para saber o que estávamos comendo...
Enfim, lancharam todos e uma hora depois estavam de volta à rua. Retornaram para a sede da ABL, onde apresentaram Policarpo a um aparelho inexistente em sua época, a televisão. Nada melhor para mostrá-lo de modo mais dinâmico o que acontecia no país. Foi aí que tomou conhecimento das fraudes em licitações públicas, do desvio de dinheiro, dos votos comprados...
— Bando de néscios, malta de bandidos, quadrilha de pândegos!! A mão da Lei será pesada sobre seus cornos!
Acharam por bem não alertá-lo que a mão pesada dos egrégios tribunais do país tinha por hábito presentear os acusados – a maioria presa em flagrante, com a mão na cumbuca, como diriam os antigos – com providenciais Habeas Corpus...
— Que fazem com meu país, calhordas? — perguntou Policarpo, sem desgrudar os já úmidos olhos da tela.
A notícia seguinte dava conta do desmatamento da Amazônia, da poluição dos rios, e da suprema incompetência governamental não só em prevenir tais problemas, como também em punir os responsáveis.
Depois do intervalo, chegou a vez do caos na saúde pública, das escolas de lata...
— Calhordas, salteadores, biltres, abutres, sacripantas!!! — xingava Policarpo, quase batendo na televisão.
Deram-lhe um calmante à base de farinha que não surtiu efeito. Por fim, preferiram trancá-lo em uma sala, para que pudesse descansar um pouco. No início da noite, mais calmo, Policarpo informou:
— Amigos, agradeço a honra de me considerarem como modelo, como exemplo, mas prefiro retirar-me. Na verdade, caríssimos, não preciseis de personagens clássicos ou de heróis míticos; preciseis de homens de carne e osso, de bom senso, justos e preocupados com o próximo, que saibam dirigir o país com responsabilidade e serenidade.
E foi-se o velho Quaresma, quem sabe passar uma quarentena no consultório do seu estimado amigo Simão Bacamarte, o Alienista, de Machado de Assis. Precisava desabafar um pouco...
“Há quantos anos vidas mais valiosas que a dele se vinham oferecendo, sacrificando, e as cousas ficaram na mesma, a terra na mesma miséria, na mesma opressão, na mesma tristeza.”
Triste Fim de Policarpo Quaresma
Texto premiado no VII Prêmio Barueri de Literatura, em 2010, na categoria "conto, de não-residentes em Barueri".
Um comentário:
Olá!
Um amigo meu de infância... Lee Thalor atuava nessa peça teatral Policarpo Quaresma!
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