Bom, daí esse sábado resolvi fazer o teste.
O combinado era às três horas eu me apresentar. Tratou-se de uma pizzaria há uns quilômetros de casa. Já fazia algum tempo que recebia os sinais. Vocês sabem, o universo vai se comunicando conosco. Portanto, lá fui eu, partindo de casa sob a garoa de um céu cinza.
Fui caminhando. Protegendo-me da chuva, a lona de um guarda-chuva laranja. Eu só tinha esse guarda-chuva pra usar, e eu não ligava pra cor dele. Dizem que é feminino, mas, para mim, tanto faz.
Eu gosto de caminhar, é um bom exercício para as pernas, tirando a sensação de nostalgia que me invade sempre quando faço. Quer dizer, não teria como eu narrar qualquer outra coisa ou acontecimento nesse ínterim senão as minhas lembranças de quando caminhava com ela segurando os meus braços. Não deixou de ser triste.
Cheguei no horário combinado. Havia um sujeito com uma cara bastante desagradável de se olhar esperando sentado à frente do lugar. A pizzaria, de grandes portas de vidro, permanecia fechada e com as luzes apagadas. Eu não tinha relógio e perguntei ao rapaz sobre as horas. Ele me respondeu, com uma cara bastante feia, que já eram pra lá das três. Eu não me deixei abater. Encostei o guarda-chuva na parede e me sentei no chão que era coberto por uma telha na entrada do estabelecimento. Não demorou e surgiu mais outro integrante. Cumprimentou-nos de uma maneira alegre. Nada acontecia, só esperávamos. Depois de uns três minutos de silêncio, resolvi perguntar qual time ele torcia, como uma maneira de puxar um assunto e dar uma desbaratinada, de repente. Já fui logo perguntando: “Corintiano?!” E ele me respondeu “ôxe, São Paulino! E você?” E eu respondi: “Corintiano” Daí ele “tem cara” Aí eu “de maloqueiro?” Aí ele “não, não foi isso que quis dizer” Aí eu “é, você também não tem cara de ser veado! Melhor assim.” E não falamos mais nada.
Ficamos esperando por pelo menos uns quarenta minutos e eu não tinha sequer uma revista. O dono do lugar não aparecia. Que tempo perdido deveria ser aquilo, eu pensava. Mesmo assim eu permaneci firme e forte. Então, passado esse tempo, chega o dono, cujo eu havia conversado no dia anterior. Estacionou o carro numa área que havia bem a nossa frente, e saíram dele cinco pessoas. Quatro operários, com a mesma cara do sujeito que conheci primeiro. Como o dono de um rebanho, tomou a frente e já se pôs com as chaves na mão a abrir o portão dos fundos, por onde iríamos entrar e seguir os seus passos. Levou-nos até o lugar onde era feito tudo. Eram dois metros quadrados para se fazer as esfihas, outro lugar do que poderia ser de uns três por dois para as pizzas, uma cozinha onde se espremia tomates e picava cebolas, além da preparação do café, e por fim um cubículo onde havia uns armários e um banheiro. Tudo isso escondido do público, com exceção do espaço onde eram preparadas as pizzas, que tinha janelas de vidro para que os clientes pudessem ver o quão higiênico era o lugar.
O pessoal já estava adaptado, já sabiam o que fazer e como fazer. Cada um, à medida que iam entrando posicionavam-se em seus lugares. Um foi preparar a massa, o outro o molho, e assim por diante. Eu fiquei ali, esperando por qualquer coisa. Talvez uma luz divina, eu não sabia ao certo. Enfim... Aí alguém me jogou um pacote com uma camiseta branca e uma espécie de toca para não deixar os cabelos caírem. Eu entreguei o meu guarda-chuva laranja para essa mesma pessoa pedindo o favor de guardar, e ouvi “iih, olha a cor do guarda-chuva do cara” E eu simplesmente ignorei. Fui até o banheiro e me vesti. O dono, que se chamava Tico, orientou um rapaz, que por coincidência era aquele que havia conhecido melhor ainda enquanto estávamos lá fora, a me passar o que deveria feito. E então foi o que ele fez. Veio com uma caixa cheia de cebolas gigantes e um facão, depois trouxe um balde e disse: “é só descascar”. Aí ficamos eu e ele tirando as cascas de uma centena de cebolas. As cebolas eram gigantes, e exalavam aquela coisa forte que nos faz chorar. O sujeito que descascava as cebolas comigo até que era gente boa. Trocamos umas idéias. Ele estudava direito, e achei aquilo peculiar. Quer dizer, que espécie de futuro advogado descasca cebolas no final de semana? Isso deve ser raro. Bom, enfim... Vivendo e aprendendo.
As cebolas foram descascadas e a essas alturas eu já sabia até o nome do sujeito, que atendia como “Jonny”. Quando soube seu nome, pensei: caramba, que coisa, um Jonny descascando cebolas. Todos operavam e davam risadas. Eu não sabia se era da minha cara ou o quê, mas eu pouco ligava. Quando eu perguntava seus nomes, como resposta ouvia: “Péba”, ou “Galego”, ou “Barriga” e etc. Quer dizer, os nomes pareciam ser improváveis e eles não paravam de dar risadas enquanto falavam comigo. Deviam estar zoando com a minha cara, certeza. Mas de qualquer maneira, eu não ligava.
Aí eu fui pra cozinha, onde espremi uns tomates. Foi um sujeito que atendia pelo nome de “Bahia” quem me orientou a usar a máquina. A máquina que espremia os tomates era uma coisa de louco. Precisava-se de muita técnica para manuseá-la. Eu não peguei a técnica e, em um momento quando apelei para a força, o tomate explodiu lá dentro, espirrando suco pra tudo que foi lado. Bahia achou estranho, e disse: “oxe” Bom, eu me desculpei. Espremi uns tomates e piquei umas cebolas, também, usando a mesma máquina. Aquilo ia ser o tempero da esfiha. Sai dali. Fui até o espaço onde era feito tudo o que tivesse a ver com as pizzas. Eles preparavam a massa e eu fui aprender. Um sujeito que atendia pelo nome de “Jow” foi quem me ensinou. A gente tinha que pegar um punhado de massa e socá-la no balcão, assim para tirar o ar de dentro dela. Feito isso, fazíamos dela uma bola e guardávamos na gaveta. Não entendia a razão daquilo, mas fui fazendo. Várias bolas de massa.
Voltei ao lugar onde era feito tudo o que tivesse a ver com as esfihas. Um rapaz baixo e gordo espremia com a mão um monte de carne moída. Devo admitir que, após ter visto uns vídeos de uns ativistas vegans, essa coisa de se espremer carnes não me desce muito bem. Contrai certa rejeição contra esse tipo de coisa. De toda maneira, não falei nada. Era meio da tarde e ainda não havia muito movimento, ou seja, muitos pedidos. Ignorei o sujeito que mexia com o amontoado de carne. Eu não tinha nada para fazer lá e fui ao banheiro. Voltei e o Jonny colocava uns saches de catchup dentro de uns saquinhos com limão. Achei que ele merecia ajuda. Ficamos lá, fazendo isso. Quer dizer, apesar da chuva, dezenas de ônibus pegavam as estradas, a tribo mística saía em excursão, alguns recebendo vales e outros sendo bonificados, milhares de cabeças fervilhando em São Paulo planejando o que seria daquela noite com as garrafas de vinho tomando suas temperaturas e todo mundo ansiosos para celebrar a vida, enfim... O mundo acontecendo e eu lá, colocando saches de catchups dentro de um saquinho com limão. Era deprimente, mas me mantive forte. Ah, como eu era feliz e não sabia, pensava. Se pudesse ao menos falar com alguma das pessoas que sinto vontade. Desculpar-me. Enfim...
Feito isso fui até a cozinha, onde preparei um café. Tomei um copo de café. Aliás, de hora em hora eu tomaria um copo de café. Aí eu voltei. Alguém fazia bolinhas de massa, o que viriam a se tornar esfihas. Fui ajudar. Era um cara gordo e mal educado quem fazia isso. Ele tentou me dar uns toques, mas eu não entendi nada do que ele pronunciava. Era como outro dialeto. Enfim... Eu dei um jeito de levar aquelas nove horas de maneira que me fosse justo o que viria a receber. Eu ajudava um pouco aqui, e um pouco ali, até quando me fixei na tarefa de tirar as pizzas do forno. Alguém ia colocando as pizzas no forno e eu ficava de guarda do outro lado esperando que ela chegasse até mim por uma espécie de esteira. O forno era a gás e a pizza vinha automaticamente por essa esteira. Não era como esses fornos a lenha que vemos nas pizzarias mais tradicionais. Aí eu recolhia a pizza e colocava no pacote, etiquetava e despachava por uma janelinha ao meu lado, apertando um sino para chamar a atenção da recepcionista que iria entregá-la ao cliente. Fiquei fazendo isso. Num dado momento, começou a se tornar insuportável o cheiro forte de bacon e calabresa que tomava conta de tudo. Eu saia de trinta em trinta minutos para tomar uma água e me refazer, além do café. Era realmente difícil. Além do calor em excesso quando ficamos na frente de um forno como aqueles.
Ia e vinha, dava um grito pra alguém coisa e tal: “Aê Bahia, faz favor!” Foi como passei o tempo. A essas alturas eu já não chamava mais ninguém pelo nome ou apelido. De uma maneira todos eram “Bahia”. De repente me disseram que eu poderia fazer a minha própria esfiha, caso eu estivesse com fome. Bem, eu não tinha comido nada durante o dia todo, decidi ir lá ver como é que se fazia. Coloquei-me ao lado daquele sujeito que não falava a mesma língua que eu. Ele virou-se a mim, enfiou o dedo no nariz e voltou a se concentrar no trabalho. Dava socos em um monte de bolinhas de massa, depois as colocava em um recipiente e amassava fazendo delas uma seqüencia de discos e, só então colocava o recheio, que na maior parte era aquela carne misturada com tomate amassado e cebola picada. Imitei o procedimento e, na hora de colocar o recheio, peguei uns brócolis e queijo que percebi na bancada. Fiz quatro esfihas de brócolis e queijo e pus ao forno. Depois de cinco minutos, Jonny (único que assimilei o nome) recolheu-as e me entregou. Sentei numa mesa que havia por ali, aquela onde ficamos colocando os catchups no saquinho. Na metade da minha primeira esfiha sentaram-se ao meu lado duas das atendentes. Colocaram sobre a mesa, cada uma, um prato com arroz e batata com carne cozida. Exalava um cheiro. Um cheiro de carne cozida. Pensei: caramba. Aí elas ficaram conversando entre si, fofocando quaisquer coisas. E então, aconteceu: puxaram papo. Bem, tentaram alguma coisa, sim, mas eu não dei abertura. Aí eu guardei duas das esfihas e decidi que já havia me satisfeito.
Voltei ao lugar onde eram feitas as pizzas. Aí eu cheguei lá e o Bahia mexia com as massas. Ele retirava da gaveta aquelas bolas que havíamos feito e, com o rolo, esticava-as. Fui fazer também. Ele me estranhou, por algum motivo, e disse: “oxe”. Muita gente dizia “oxe”. Eu achava aquilo engraçado e simpático. E então eu me pus a esticar as massas, formando o disco. Não tive problemas com aquilo. Quer dizer, o meu ritmo não era tão bom, mas consegui algumas coisas.
Voltei a retirar as pizzas. Era tudo muito louco e frenético. Num sábado, uma pizzaria fervilha. Não temos muito que fazer a não ser tentar ajudar de todas as formas. De qualquer maneira, eu fiquei fixo na tarefa de retirar as pizzas do forno e despachar. Pela janela onde eu colocava as pizzas, apareceu a cabeça de uma das atendentes: “nossa, você aprende rápido” E eu não respondi nada. Qualquer coisa que viesse a dizer faria com que ela se achasse no direito de me dizer mais e mais coisas, o que iria gerar um baita mal entendido. Portanto, foi isso.
Meia noite e fui ao banheiro. Tirei a camiseta e a embrulhei novamente no plástico. Eu estava ansioso. Tirei a toca. Deixei tudo no armário. Sai e fui falar com o Tico, que comia sushis na cozinha. Ele me ofereceu, mas eu disse que não queria. Por algum motivo, ele já sabia de tudo e me deu trinta e seis reais, que era o equivalente às nove horas trabalhadas e mais os seis da condução. Agradeci-o e disse que havia sido uma boa experiência. Avisei-o caso precisasse de um motoqueiro, que iria ser um prazer.Sai de lá e dei uma boa noite Bahia de uma maneira geral. Todos retribuíram.
Pronto. Missão cumprida, né?
Sim, na rua, olhei pro céu. A atmosfera era agradável. Comuniquei-me com o universo. Houve alguma atenção por parte dele, senão eu não estaria escrevendo isso agora. Pensei nela. Pensei na vida. Caminhei. Caminhei sob a garoa. A sensação de nostalgia voltou a me invadir. Quantas vezes não passeamos sob a chuva com você segurando os meus braços? Agora ninguém o segurava. Era tudo muito simples e perfeito ao seu lado. O teu sorrido. Onde foi parar? A minha vida, onde foi parar? A nossa vida.
Entrei e sentei no balcão. Pedi uma garrafa de cerveja, enquanto uns moleques davam risadas em companhia de suas meninas numa mesa atrás de mim. Eu não tenho mais paciência pra isso. A gente era feliz. Fomos felizes. Tomei a garrafa de cerveja lembrando cada uma das garrafas que tomamos juntos. Lembrei do dia em que fui feliz ao teu lado. Ainda ouço você me acordar dizendo “bom dia Bahia”. E eu, às vezes, sem querer, me pego dizendo sozinho “bom dia, flor do dia”. Pra quem? Eu devo estar ficando louco.
Veio alguém e me cumprimentou. Eu só conhecia de vista, não sabia quem era. Talvez tenhamos estudado juntos há muito tempo atrás. De qualquer maneira, retribui. Pedi outra cerveja. Depois, uma dose de vodka... E assim por diante, você sabe como é... Mantive o pensamento em você.
Entrou no bar, por alguma coincidência metafísica qualquer dessas, uma daquelas atendentes. Não sei qual foi a concordância astral, mas lá estava ela. Passou por detrás de mim rebolando e senti o cheiro de um perfume. Bem, não era um ”Caroline Herrera”. Eu girei o rosto, como não iria fazer? Caminhou com a bunda empinada até o fundo, lá onde havia os sanitários. Parou, girou e olhou-me. Meditei e pensei: que mal tem? Ela prosseguiu. Virei a vodka que ainda restava no copo, levantei e fui. Ela me aguardava com a porta aberta segurando a maçaneta. Mesmo sendo feminino, empurrei-a porta adentro, de maneira que ficasse sem saída. Deixei que a porta se fechasse sozinha e a joguei pra dentro de uma das cabines, enquanto ela abaixava a saia toda desengonçada. Com as pernas arriadas, sentada numa privada de tampas fechadas, pôs com cautela o fio frontal da calcinha de lado, no instante em que pensei: caramba. Tirei pra fora, embrulhei-o e meti. Conforme as investidas, a cabeça da danada balançava que parecia uma maria mole pendendo pra fora. Na hora de gozar fiz graça: mirei no umbigo, mas acertei o olho. Acontece. Recompus-me e sai. Voltei a sentar no balcão e pedi outra cerveja. Ela ficou lá, não sei o que fazendo. Eu virava o copo quando passou por detrás de mim e beliscou meu abdome. Girei o rosto de maneira a retribuir. Arrivederci.
Sai de lá no meio da madrugada, assim que o bar fechou, ouvindo um psykovsky pelos fones de ouvido. Em momento algum eu tomei um ônibus, mas economizei e fui caminhando. Sempre caminhando. No dia seguinte acordei bem. Fui até o correio e postei dez reais que me sobrou ao endereço de minha ex-mulher. Meu bacuri tá lá, lindo e esperto. Como não pensar nele? Não sei se chegou o dinheiro, os correios são incertos. Ainda mais quando encaminhamos por carta simples.
Depois fiquei lendo a história do Brasil.
(por Lito Spuleta)
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