segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Convidada Irene Canadinhas


A solidariedade que fuma

Em tempos modernos, ainda se pediam desculpas e obrigados. Hoje, é só pisar no pé de alguém e ter medo de pedir perdão. Aliás, perdão faz parte do vocabulário? Desculpa, que é desculpa, recebe como réplica uma cara feia ou um #naotoentendendonada.
As pessoas perderam os hábitos das gentilezas? Sou taxativa: não entre os fumantes.
Por mais que eu não goste do cheiro com o qual convivo desde meus tempos imemoriais (eu já fumei também e sei o quanto incomoda a quem não tem esse hábito), tenho de reconhecer o quanto se ajudam os fumantes.
- Por favor, você poderia me arranjar um cigarro?
Pessoas que nunca se viram se interpelam e sorriem entre si e se ajudam com a doação que é feita sem titubear, exceto em um caso. Cigarro não tem como dividir, igual a chiclete que a gente partia no meio quando criança para compartilhar com amigo de escola. Então, com cara da pena que já se sentiu na carne, o fumante mostra o maço: colega, foi mal... é o último.
Só uma vez eu presenciei mais que doação. Mesa de bar... óbvio: cerveja, cigarros e um hippie (o hippie mais de verdade que eu vi até hoje). Ele veio, mostrou sua arte, contou sobre sua vida e sua bicicleta. Foi quando indicamos que ele fosse outro dia naquele local. Afinal, não tínhamos dinheiro suficiente para comprar as belas peças que ele vendia e, em outros dias da semana, tiraria mais que algum. Eis que ele sorri, com aqueles não-dentes. Os emaranhados jogados para trás com a cabeça, olha para o céu, respira. Preparava-se para quê?
- Vocês sabem que existiu alguém que morreu por nós?
Todos perplexos... e atentos. Hippie evangélico? Que igreja é essa?
- Jesus... Jesus morreu por nós... Morreu por todos nós...
Bocas abertas e alguns narizes torcidos, esperando o testemunho.
- Eu não sei morrer por todo mundo... Não sou capaz disso, não tenho santidade para isso. Mas, se você me permitir, eu posso morrer só um pouquinho, junto... Eu divido sua morte com a minha, se você me arranjar um cigarro.
Nunca vi tanta gente altruísta como naquele dia. Os fumantes, naturalmente solidários entre si, entregaram-se. Menos com o último.


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Irene Canadinhas é gestora cultural.

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7 comentários:

Unknown disse...

Uma honra e um brinde vinho!

Giovani Iemini disse...

sempre bem vinda.

Poções de Arte disse...

Gostei do texto!
Principalmente das palavras do hippie, criatividade 1000!

Abraços.

Ray disse...

Obrigada pelo convite. Amei a forma como são escrito os textos por aqui . Muito criativo !
Dia 23 estarei aqui : )

Vanuza Pantaleão disse...

Fez-me lembrar da música Mesa de Bar do nosso saudoso Gonzaguinha.
Um texto muito bem escrito. Parabéns!Bjsss

Anônimo disse...

Adorei o texto e esse hippie ai, e tenho uma observação! A solidariedade entre fumantes em geral se estende aos de maconha em particular, só que a gente ainda compartilha o derradeiro, o último, a perninha de grilo com 1, 2, 3 e qtos estranhos surgirem. Não é muito higiênico, mas é lindo. rsrs ,<3
bjs Irene! E parabéns pelo texto!
Talita

Cristiano Lagame disse...

Que interessante! Achei muito engraçado o depoimento, ótimo texto!