A
solidariedade que fuma
Em tempos
modernos, ainda se pediam desculpas e obrigados. Hoje, é só pisar
no pé de alguém e ter medo de pedir perdão. Aliás, perdão faz
parte do vocabulário? Desculpa, que é desculpa, recebe como réplica
uma cara feia ou um #naotoentendendonada.
As
pessoas perderam os hábitos das gentilezas? Sou taxativa: não entre
os fumantes.
Por mais
que eu não goste do cheiro com o qual convivo desde meus tempos
imemoriais (eu já fumei também e sei o quanto incomoda a quem não
tem esse hábito), tenho de reconhecer o quanto se ajudam os
fumantes.
- Por
favor, você poderia me arranjar um cigarro?
Pessoas
que nunca se viram se interpelam e sorriem entre si e se ajudam com a
doação que é feita sem titubear, exceto em um caso. Cigarro não
tem como dividir, igual a chiclete que a gente partia no meio quando
criança para compartilhar com amigo de escola. Então, com cara da
pena que já se sentiu na carne, o fumante mostra o maço: colega,
foi mal... é o último.
Só uma
vez eu presenciei mais que doação. Mesa de bar... óbvio: cerveja,
cigarros e um hippie (o hippie mais de verdade que eu vi até hoje).
Ele veio, mostrou sua arte, contou sobre sua vida e sua bicicleta.
Foi quando indicamos que ele fosse outro dia naquele local. Afinal,
não tínhamos dinheiro suficiente para comprar as belas peças que
ele vendia e, em outros dias da semana, tiraria mais que algum. Eis
que ele sorri, com aqueles não-dentes. Os emaranhados jogados para
trás com a cabeça, olha para o céu, respira. Preparava-se para
quê?
- Vocês
sabem que existiu alguém que morreu por nós?
Todos
perplexos... e atentos. Hippie evangélico? Que igreja é essa?
-
Jesus... Jesus morreu por nós... Morreu por todos nós...
Bocas
abertas e alguns narizes torcidos, esperando o testemunho.
- Eu não
sei morrer por todo mundo... Não sou capaz disso, não tenho
santidade para isso. Mas, se você me permitir, eu posso morrer só
um pouquinho, junto... Eu divido sua morte com a minha, se você me
arranjar um cigarro.
Nunca vi
tanta gente altruísta como naquele dia. Os fumantes, naturalmente
solidários entre si, entregaram-se. Menos com o último.
---
Irene Canadinhas é gestora cultural.
--
7 comentários:
Uma honra e um brinde vinho!
sempre bem vinda.
Gostei do texto!
Principalmente das palavras do hippie, criatividade 1000!
Abraços.
Obrigada pelo convite. Amei a forma como são escrito os textos por aqui . Muito criativo !
Dia 23 estarei aqui : )
Fez-me lembrar da música Mesa de Bar do nosso saudoso Gonzaguinha.
Um texto muito bem escrito. Parabéns!Bjsss
Adorei o texto e esse hippie ai, e tenho uma observação! A solidariedade entre fumantes em geral se estende aos de maconha em particular, só que a gente ainda compartilha o derradeiro, o último, a perninha de grilo com 1, 2, 3 e qtos estranhos surgirem. Não é muito higiênico, mas é lindo. rsrs ,<3
bjs Irene! E parabéns pelo texto!
Talita
Que interessante! Achei muito engraçado o depoimento, ótimo texto!
Postar um comentário