Deixei o
carro de manhã na oficina eu fui pro ponto de ônibus. Até me ofereceram carona,
mas falei “ah, um busu não incomoda, relaxa”. Subi no 136 para sair do burguês
Lago Norte em direção ao centro de Brasília. “É pela W3, motora?”, ele
confirmou.
Li na
plaqueta: ônibus urbano I custava 2 reais, urbano II era 3 reais e outros mais.
“Quanto é?”, o cobrador esticou dois dedos, depois aumentou um, ou seja, 3
reais. Paguei, mas, confesso, achei estranha a mudança de dedos, talvez fosse
lerdeza do cara.
Pensei na
minha própria lerdeza e fui me sentar. Sou daqueles calmões que saem da paz
completa para DEFCON 5 em milésimos, normalmente por conta de sacanagens,
babaquices ou tirações de onda.
Aconteceu,
certa feita, de ir com minha sobrinha ao banco e parei o carro em frente a uma
vaga. Esperava o veículo da frente passar, não queria atrapalhá-lo, porém ele
embicou pra minha vaga. Dei uma buzinadinha, dessas que dizem “hei”. O sujeito,
um hipster, falou “você não tava dando seta”. Ok, não tava mesmo, não era óbvio
que eu ia estacionar? Mas me contive, acelerei cinco metros e estacionei em
outra vaga. Saí de mão dada com a sobrinha em direção ao banco. O sujeito,
cabelinho irregular, óculos grosso sem lente, camisa xadrez de flanela vermelha
combinando com o tênis AllStar, me abordou e proferiu “pra você estacionar na
vaga tem que dar seta”. Da paz a DEFCON 5. Soltei a mão da sobrinha e a
empurrei para trás de mim. “Fica na tua, filho da puta, que não reclamei da tua
babaquice”. Ele insistiu “mas a seta...”. “vá se foder, seu merdinha, que tu é
um escroto ladrão de vaga que não vale a bosta que come”.
Minha sobrinha
cobriu os ouvidos e, espirituosa, comentou “pode falar, tio vani, que não tô
escutando nada. Laralá”. Mas eu já tinha dado meu recado. O hipster se calou,
fez que ia voltar para o carro, se virou para o banco e, então, deu a volta
sobre si mesmo e foi pra lugar incerto e desconhecido.
Ri um
pouquinho, é verdade, mas como eu deveria agir com um sujeitinho desses, que
pra se justificar por sua descortesia, tentava me culpar pelo próprio erro? Se
eu já havia consentido que ele poderia ficar com a vaga pela minha falta de
seta, pra quê tirar onda? Ri mais um pouco do desconcerto do cara depois da
minha bronca.
O motorista
do busu que eu tava entrou no Eixo W em direção à rodoviária. Fui até a frente
e perguntei “hei, motora, você não falou que ia pela W3?”. Ele não respondeu.
Resolvi manter a calma, não quero mais rugas e, como parafraseou o confrade Carlos
Ayres Britto, para isso basta diminuir as rusgas. Saltei do ônibus e andei o
excedente até meu destino.
Na volta do
escritório, à noite, peguei o mesmo ônibus e, curiosamente, com a mesma dupla
motorista e cobrador. Coincidência? Isso não existe, era mesmo indução quântica
sobrenatural.
Perguntei
novamente ao cobrador, “quanto é?” e ele respondeu “dois”.
Eu ri. Ou
melhor, mostrei os caninos. Que malandro, o cara. Sacou que o branquelão aqui
com cara de burguês nem imaginava o preço da passagem de manhã e surrupiou um
real, 50% do valor total, muito mais que os tais 20 centavos que estão
mobilizando o Brasil. Eu ia deixar barato? Jamé!
“Ô cobrador,
a passagem baixou?”. Ele abriu dois olhões de reconhecimento. “Tá lembrando de
mim, né? Você me roubou um real!”. Ele olhou para o motorista, o tal que não
foi pela W3 e me obrigou a caminhar excessivamente. Provavelmente eram
parceiros. Eu poderia enraivecer até o DEFCON máximo, mas havia me exercitado
durante o dia, caminhada com mochila nas costas, tava com fome, ia deixar
barato sim, mas não sem dar o recado. “Tu é um ladrão filho da puta de merda, é
por conta de gentinha como você que este país é um cu fodido.”. Exibi novamente
os caninos. “Vou quebrar tua cara”.
É claro que
não bati nele. Retesei os músculos e rosnei um “há” pra cima do canalha. Ele
quicou de susto. E eu, novamente, ri. Fazer o quê? Espancar cada babaca safado
que cruza meu caminho? Não sou o Zorro, só vivo nessa zorra humana por falta de
opção, aliás, só mesmo num mundo alienígena para me sentir em casa.
Me sentei,
caninos expostos num sorriso de vingança, pensando quão relaxante estava pegar
o busu vendo a cara de vergonha do cobrador. Ainda me incomodava o caso do hipster,
a bronca com ele só voltou por entender que algumas pessoas já estão
exasperadas com as babaquices alheias, porém ele não deveria ter tirado onda.
Comigo não, faço de tudo para não atrapalhar a vida de ninguém, não me venham
com sacanagens.
Quando chegou
meu ponto, gritei pro motora “anda mais cinco metros, safado, que quero descer
desta vez no lugar certo”. Ele assentiu sem pestanejar, sabia que me devia
isso.
Os 20
centavos que incomodam tanto não são uma questão dinheiro, mas de educação,
respeito e honestidade.
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crônica tb publicada no blog do autor.
7 comentários:
ainda bem que nasci mulher. por conta disso mostro menos os dentes, mas se tivesse mais porte e caninos acho que já teria levado uns tiros por ai. sem nada disso já me faço de valente. hahhahah adorei gi.
tnxs, querida.
eu finjo que sou bravo, na verdade. já funciona. hehehe.
coisa fina, lembrou-me o cobrador do rubão, gosto da linguagem simples, uma fez falaram pro nelson que os textos dele eram muito pobres e ele responde de bate-pronto - “meus textos são realmente pobres. só eu sei o trabalho que me dá empobrecê-los.”
É! O buraco é mais embaixo! Os velhos e bons textos "pés no chão" do Giovani, muito bom, como sempre um prazer ler...
Se eu fosse um dos caras chamava o outro e te enfiava a porrada. Hauhau que cara mais macho esse Giovani! Tem 50 de braço?
hehehe, sou impositivo. pra me encarar, tem que ter certeza da vitória. e, isso, ninguém tem.
Voltou pra polícia? hehehe
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