Era uma daquelas crianças quietas. Gostava de tudo muito organizado. Não
se enturmava com ninguém. Brincava sozinho. Ocupava o sótão da casa com um
pequeno exército feito de soldados de pedra que ele mesmo fabricou. Menino calado, sempre acompanhado de um boneco
sujo e surrado de natais passados. Natal que, aliás, era o maior medo dele.
Quando começavam os preparativos para as festas de fim de ano Calel se
calava ainda mais. Esgueirava-se pelos cantos da casa e passava a dormir com a
luz acesa.
Tudo começou na infância. Nos três primeiros anos de vida, quando as
árvores natalinas eram instaladas em lojas e casas, o menino não parava de
chorar. Para sair à rua era arrastado pela mãe. Quanto mais enfeites, mais o
desespero dele aumentava. Certa vez ele teve um ataque de fúria em uma dessas
visitas ao Papai Noel do shopping. Surtou. Gritou, esperneou, arranhou o Papai
Noel. A mãe de Calel não conseguia acreditar na bagunça que o filho havia
armado.
Desde esse escândalo nunca mais se ouviu falar em visitas ao presépio do shopping.
O pânico do menino ao avistar, mesmo que de longe, qualquer figura que
lembrasse Natal intrigava a todos à volta dele. Na escola a professora não
sabia como reagir. Certo dia, Calel subiu a escadaria até a biblioteca do
colégio. Era horário do recreio, crianças corriam pelos corredores, lá fora uma
chuva impedia que se explorassem os campos de futebol. Calel ia em direção à porta
da biblioteca quando deu de cara com um boneco do Papai Noel em tamanho
natural. Ele simplesmente estancou. Parou de caminhar e ficou olhando fixamente
para aquele boneco. Não se mexeu durante o intervalo todo. Nem piscava. Uma das
professoras o encontrou depois que os outros alunos se recolheram à sala de
aula. Ele ficou lá, estático, como se tivesse visto um fantasma.
– Calel, querido, a sirene tocou, disse a professora pacientemente.
Ele não respondeu, sequer olhou para ela. A professora, sutilmente, tocou
os ombros dele e o empurrou em direção à diretoria. Neste momento o menino
acordou do que parecia ser um coma profundo. O grito que ele deu invadiu os corredores
da escola e todos foram ver do que se tratava. Ele desmaiou. Foi levado para
casa nos braços do pai que foi correndo atender ao chamado da diretora.
O tempo passou e os pais desistiram de festas natalinas, presentes,
enfeites, músicas.
Na véspera de Natal do ano passado Calel se escondeu embaixo da cama e de
lá não quis sair de maneira alguma. A mãe foi conversar com o filho:
– Meu filho, porque você está ai? Vamos conversar. Eu fiz leite com
chocolate bem quentinho, como você gosta.
– Não mamãe. Eu não vou sair daqui. Eles agora estão até nas fotos. E
ontem um apareceu no sótão. O exército não está mais conseguindo me proteger.
– Que história é essa, menino?
– Olha essa foto mamãe, a senhora consegue ver? Esticou uma foto
amarelada em direção a ela.
Lurdes, a mãe de Calel, pegou a fotografia carcomida pelo tempo e ficou
surpresa ao perceber que se tratava de uma antiga foto de família, no Natal de muitos
anos atrás, quando ela era uma menina na idade do filho.
– Calel onde você encontrou isso? É uma foto com sua bisavó. Nesta noite
ganhei a maior e melhor boneca da minha vida. Foi no ano que seu avô morreu.
– Mamãe, a senhora não vê? Ali atrás, perto da árvore?
– Não, nada. Apenas uma pilha de presentes...
Ele começou a chorar. Devagar foi saindo de baixo da cama e sentou
próximo à mãe. O braço estava todo
arranhando. Havia sangue na camiseta.
– Eu vejo ele. Eles. Ali atrás, falou baixinho secando as lágrimas. E
apontou para a parede onde estava a árvore com os presentes. A mãe tomou a foto do garoto.
– Calel, pare de bobagens. Não tem nada ali. E vamos logo limpar esse
braço. Como você se machucou?
– Você não entende? Antes eles não apareciam em fotos, gritou o menino.
– Antes eles não conseguiam me machucar. Deixou a xícara de leite quente
cair no chão e saiu correndo em direção ao sótão.
Ficou por lá a tarde toda. Quando
o pai chegou ele desceu, deu boa noite a todos e foi para o quarto. Foi mais
uma noite de pânico. Como todos as outras noites de Natal. Calel gritava e
socava o ar. Os pais conseguiram pegá-lo no colo e o levaram para o quarto
deles. Assim ele se aquietou. No outro dia pela manhã, envergonhado pediu
desculpas aos pais.
O pai aproveitou para entregar um presente ao filho.
– Calel, esse seu ursinho ai já está velho e sujo. Veja o que eu lhe
trouxe. E entregou o embrulho ao filho.
Calel entrou novamente em estado de pânico, e olhava para o presente como
se mil cobras estivessem se mexendo dentro daquela caixa. Saiu correndo e se
trancou no guarda-roupa. Não saiu de lá o dia todo. Foi dormir sem nada comer.
Os dias correram, Calel se acalmou e finalmente as festividades se
encerraram.
O ano-novo chegou e passou sem grandes sustos naquela casa. O menino
tirou todas as fotos natalinas dos porta-retratos. Também rasgou todo e
qualquer presente, embrulho, cartão. Não havia sinal algum de Natal nem nas
caixas velhas escondidas no sótão.
Mas o tempo passou e novamente o Natal estava para chegar. Calel já havia
completado dez anos. Continuava as tardes trancado com seu pequeno exército de
pedra. O urso velho estava ainda mais gasto, mas mantinha-se inseparável. O
menino quase não falava e até para ir à escola era um sacrifício.
Na véspera de Natal os pais foram convidados a participar da festa na
casa do prefeito. Seria muito importante eles comparecerem, concluiu o pai na
hora do almoço. Afinal ele se preparava para disputar as eleições na câmara
municipal.
– Nós vamos meu filho e para que você não apronte das suas vamos
contratar uma babá para cuidar de você esta noite. E assim fizeram. Os dois
saíram impecáveis. Levavam presentes para serem distribuídos. Calel olhava com
asco e medo. A babá chegou e Calel foi para o quarto.
A babá na verdade era a filha da vizinha. Alice o nome dela. Desde sempre
ajudava a cuidar do menino. Por conta do dinheiro bom que estava sendo pago
desistiu de passar o Natal com a família. E ainda ia aproveitar para ver o
namoradinho.
– Calel? Estou na sala vendo TV. Você não quer ficar comigo? Perguntou
Alice.
– Vou ficar aqui. Estou bem, respondeu Calel espalhando o exército de
pedra ao redor da cama.
Ficou sentado de olhos bem abertos e apavorado enquanto lá fora o mundo
comemorava a chegada do Papai Noel. Se eles soubessem o que eu sei, pensou o
garoto consigo mesmo.
De repente um barulho estranho veio da sala. Calel ficou em duvida entre
se esconder embaixo das cobertas ou ir ver o que era. Lembrou-se de Alice
sozinha. Abriu a porta e olhou o corredor escuro que dava acesso à escadaria
que levava até a sala. Lá debaixo novamente um barulho abafado e a televisão
num volume acima do normal. Alice deixou num canal que só tocava música
natalina. Calel foi pé ante pé até a escada. Começou a descer com bastante
cautela. As sombras que se formavam na parede pareciam querer engolir o menino.
Chegando ao pé da escada Calel pode ver o horror:
O monstro estava sufocando Alice. Sem pensar duas vezes correu em direção
a eles e os derrubou no chão. Conseguiu esticar o braço e alcançou o abajour que havia caído durante o salto.
De um golpe só acertou a cabeça do monstro. Alice gritava e recebeu os jatos de
sangue na cara enquanto Calel destruía aquela besta. Alice saiu correndo, quase
foi atropelada e se trancou na própria casa. Calel foi atrás dela. A casa de
Alice estava toda enfeitada. Cada enfeite daqueles era uma bestialidade sorrindo
para Calel. Desde que nasceu podia ver o verdadeiro espírito de Natal. Que não
tinha nada de divertido.
Eram seres horrendos, disformes, famintos, com dentes amedrontadores. Os
olhos injetados de terror e ódio.
Cada árvore enfeitada para o Natal se transformava em um esqueleto
monstruoso, um ser de proporções gigantes, eram como cadáveres sem pele,
apodrecidos e esfaimados.
As caixas de presente se transformavam em bichos peçonhentos de espécies
nunca vistas antes. Eram cobras de três cabeças, escorpiões de duas caudas, era
como se a porta do inferno se abrisse e de lá saíssem as criaturas mais grotescas
do universo.
Cada Papai Noel, mesmo que um fantoche, ou um inocente boneco cantor, era
um espírito maligno que se manifestava. Todos aproveitavam para matar a sede de
ódio que sentiam. Cada criança abraçada servia de alimento para eles. Eram
comedores de almas. Invariavelmente nas famílias mais chegadas a festas
natalinas alguém morria porque os espíritos sugavam tanto a energia deles que
muitos não aguentavam.
E Calel podia vê-los. Podia senti-los. E nada conseguia impedir aqueles
servos do mal. A única coisa que funcionava para Calel era o exército de pedra
que ele mesmo fizera. De alguma maneira aquelas pedras afastavam os seres
malignos. A cada Natal ele fabricava mais e mais. O urso velho também o
protegia. Servia como uma espécie de amuleto.
Calel encontrou Alice apavorada.
– Precisamos conversar, implorou Calel.
Alice segurava uma faca afiada.
– Você matou meu namorado, Calel. Ele foi me fazer uma surpresa e você o
matou, lamentava Alice, chorando e apontando a faca para o garoto.
– Alice, ele era um demônio, um ser de outro planeta, não sei, acredite
em mim, eu posso ver a verdade.
– Não, gritou Alice, não pode ser. Ele estava apenas fantasiado de Papai
Noel. E a moça caiu em prantos. Largou a
faca e Calel aproveitou para se aproximar. Pediu a Alice para irem embora dali
já que a casa estava infestada de monstros nos enfeites que a adornavam.
Alice estava em choque e aceitou sair com o menino. Sentaram no meio fio em
frente à casa de Calel. A porta estava aberta e lá dentro se via o corpo do tal
namorado.
– Eu acho que eu vi também, falou Alice em uma voz embargada, quase
sussurrando.
– O quê? Duvidou Calel.
– Sim, quando você estava batendo nele, eu acho que vi. Ele estava
medonho, assustador, com garras, e uma pele que... Ah Calel, isso é loucura,
como pode ser?
– Alice, ninguém mais vê. Para todo mundo eu matei o seu namorado. Nem
ele sabia que estava sendo usado. Mas acredite, eles estão em tudo até nas
bolinhas da árvore. Eu vejo todos. E sinto. E eles me machucam. Antes ficavam
de longe, à espreita, mas agora já conseguem me tocar. E começaram a aparecer
em fotos também. Quando as crianças estão sendo sugadas, as almas delas choram
e eu ouço. É horrível. O grito de uma alma é ensurdecedor. Me desculpe, mas eu
não aguentei. Ele ia matar sua alma Alice. Foi por pouco.
– Mas eu não senti nada, argumentou.
– Pois é, ninguém sente. O corpo não sente, mas eu vejo e ouço o que a alma
sente. Ela grita pedindo socorro.
Alice se encolheu nos braços de Calel.
– E agora, o que vamos fazer? Perguntou Alice.
– Não sei. Vamos ter que inventar um assalto, algo assim. Você me ajuda?
Foram os dois tentar limpar a bagunça, ainda tremiam diante de tanto
horror. Chamaram a polícia. Os pais de Calel chegaram preocupados. A mãe foi
correndo ao encontro do filho. Abraçou o menino e perguntava sem parar se
estavam bem. Alice também foi amparada pelos pais. A polícia tirou fotos, fez
uma perícia preliminar e pegou o depoimento das crianças. Os dois contaram que
pensaram se tratar de um ladrão e só perceberam que não era quando conseguiram
que o homem ficasse quieto.
Alice não parava de chorar. Contou que conhecia o rapaz da escola e que
por ele estar vestido de Papai Noel não o reconheceu. E assim deram por
encerrada a história de legitima defesa.
Alice e Calel, desde então, andam sempre juntos. Constroem soldados de
pedra. Se encerram em bibliotecas onde tentam achar teorias. Nada ainda explicou
quem são esses seres. E o garoto mostrou à Alice a foto antiga da família. Ela
pode ver realmente que no cenário atrás das crianças há uma árvore disforme,
esquelética, perversa, toda coberta por enfeites que são bocas abertas com
dentes afiadíssimos e cruéis. Nas caixas de presentes saem insetos e bichos
nojentos que se espalham pelo chão. E um Papai Noel demoníaco e monstruoso olha
diretamente para eles.
Fim
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5 comentários:
Muito bom texto! Embora "entregue" a identidade do monstro (leitores experientes já vão sacar de cara que é o namorado da moça), faz uma reviravolta no final, tornando Alice aliada de Calel (ótimo nome, remetendo ao Kal-El kryptoniano).
Gostei mesmo!
que bom celso. obrigada pela opinião.
beijoca.
Que delicia de texto, é a vida de cada um, diferente da que imaginamos, afinal somos milhares e cada um de nós temos nossa história.
Adorei!
bjs
Ritinha
ei ritinha, que delícia sua opinião. brigada beijoca.
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