Os odores alquímicos vindos da cozinha inebriavam os cômodos da pequena casa geminada. O tempero de Maria serpenteava para fora do seu lar, invadia a vila e, através dos vapores, anunciava à vizinhança que à noite o casal talvez se reconciliasse, sepultando a madrugada entrecortada pelo som das pancadas desferidas por José, pontilhadas por sua voz desfigurada pela bebida e gemidos à surdina da esposa.
Apesar da violência da noite, os vizinhos não deixaram de se encantar com o cheiro liberado pelas panelas da vizinha espancada. Quando feliz, Maria costumava dedicar-se com ardor as artes culinárias. A mistura de alho, cebola, óleo e outros ingredientes não podiam combinar com o estado de espírito em que devia se encontrar aquela mulher surrada de véspera. Na verdade, não se ouvia sua voz miúda, um tanto desafinada, cantarolando melodias populares enquanto cozinhava. Os cheiros que emanavam da cozinha de Maria possuíam uma trilha-sonora. Por conta dos fatos, naquela tarde, a mudez de Maria durante o cozinhar não causava estranheza a vizinhança.
Os moradores ainda tinham frescas em suas memórias o dia em que o casal se mudara para a vila, dois jovens ainda entorpecidos pela felicidade de uma lua-de-mel recente. Prestativos, os homens trataram de ajudar José a descarregar a mobília do caminhão enquanto Maria era convidada a se reunir com algumas mulheres em uma das casas. Foi improvisada uma feijoada para alimentar os trabalhadores. A noite terminou com uma roda de samba em homenagem aos novos vizinhos. Vendo aquele jovem casal dançando em torno dos músicos como que participantes de um ritual de agradecimento a gentil acolhida, quem imaginaria que anos depois a tranqüilidade quase idílica da vila fosse quebrada pela violência de José no breu da madrugada?
Naquela noite, José chegou a vila um tanto constrangido. Era a imagem do canalha arrependido. Passara todo o dia no trabalho cabisbaixo, respondendo aos colegas por meio de monossílabos, ruminando as possíveis conseqüências da sua brutalidade. Não era um homem dado a perversidades. Culpava a cachaça pelo incidente da madrugada anterior. Também, por que Maria havia de se meter em sua vida? Era adulto, senhor de suas vontades. Que mal havia em ficar umas horas na birosca tomando uns tragos com os amigos? Todos faziam aquilo por aquelas bandas. Chegara trocando pernas. Maria, de cara amarrada, o censurara pela bebedeira. Reclamou. Ele falou mais alto. Contudo, o que provocara a sua ira, materializada nas porradas dadas na companheira, fora ela chamá-lo de desgraçado. Que chamasse do que quisesse. José se esparramaria em um canto para curar a porre e tudo acabaria. Mas qual! Sua mulher o xingara de desgraçado! Ela conhecia o seu ódio por este insulto. Seu pai costumava ofendê-lo com aquela palavra. Fora de si, deu uma bofetada na esposa. Maria, por força do impacto, caiu sentada no sofá arregalando os olhos castanhos, surpreendida pela reação do marido. Limpou o sangue que brotara do canto do lábio e demonstrando um ódio entranhado, repetiu três vezes sem baixar a cabeça: “Desgraçado”, “Desgraçado”, Desgraçado”. José desferiu dois socos na mulher atingindo-a no rosto e abdome. Ele não resistiu a violência dos golpes, desmaiando. Extenuado, dormiu no sofá. Idéias embaralhadas pelo álcool, decretou que a esposa fora a culpada pela própria agressão. Na manhã seguinte, porre curado, não entrou no quarto para ver o estado da esposa. Foi trabalhar corroído pelo remorso.
Enfiou a chave na porta, torceu delicadamente a fechadura. José parecia captar as dezenas de olhares vizinhos ocultos nas casas geminadas, a espera, quem sabe, da reconciliação.
Encontrou Maria radiante, com um sorriso desfigurando seu rosto. A mulher trajava seu melhor vestido, um azul, que modelava sensualmente seu corpo. José percebeu um leve hematoma abaixo do olho esquerdo da esposa. Notou a mesa posta com capricho e o olor da comida impregnando a casa. Aliviado, entendeu que fora perdoado. Jantaram como nunca haviam jantado. Maria se esmerara nos pratos. Riram, gargalharam, beberam, se acariciaram e às portas da madrugada amaram-se como há muito tempo não faziam.
Ao invés dos galos, a vizinhança amanheceu despertada pelos os urros de José, corpo incendiado, a correr sem direção pela vila. Para horror dos que testemunharam, sentada a soleira da porta, Maria apenas observava a agonia estrebuchada do marido. Dera a José uma noite memorável antes da vingança. A Justiça decretou 22 anos de prisão. Homicídio por motivo torpe. Vingar uma surra não justificava assassinato, entendera uma parte do júri. Maria recorreu. Talvez ganhe. Dizem que o cheiro da carne queimada ainda hoje empesteia a vila.
* Escrito por Dr. Jekyll em setembro de 2001, um dia antes da tragédia do World Trade Center. Sofreu alqumas adaptações no decorrer dos anos para torná-lo menos medíocre.
9 comentários:
Não é que a danada sabia cozinhar mesmo! Agora o négocio é quem vai querer comer uma carne tão ruim.
Quando a esmola é muita o santo "têm" que desconfiar... Agora já sei por que o nome do cara era José...Mais conhecido como Zé Mané; bate na esposa e ainda se regala com o jantar vingança da mesma, sem nem parar para meditar, hehehe
Mas se esse jantar vira moda, muito fulano vai comer grama pela raiz...
Mandou bem, Lama.
Ah, só um "Dera e José" fora do lugar, mas isso é bico.
ficanapaz!
Já fiz a correção meu bom lobo.
Esta história desmente um ditado: "a vingança é um prato que se seerve frio".
Vade retro satanás. 200 anos de cadeia para a cozinheira.
Acho que vou ficar uma semana sem dormir só imaginando o pobre José.
clichê.
mas é bom.
Oras, deve ter sido um prato um interessante. Qual foi o vinho que ela usou para flambar?
Risos
Adorei essa Maria, mas se a moda pega!
Lameque, você criou uma boa história com bons personagens.
você é, de longe, uma das maiores expressões da narrativa aqui da casa.
sigo contigo e me orgulho.
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