terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Uma tradução de Les Djinns de Victor Hugo


No prefácio de Les Orientales, de 1829, considerado por críticos da época mais importante do que o livro, Victor Hugo defendia a ‘poesia inútil’: a arte pela arte. O direito do poeta de escrever sem motivo, levado apenas pela fantasia.


A crítica habituada a um Hugo engajado considerou o livro mero exercício de versificação. Hugo diz no prefácio: “Se a alguém ocorrer perguntar ao poeta ‘Para que servem estes Orientais? O que lhe deu a idéia de ir passear pelo Oriente por um volume inteiro? O que significa este livro inútil de pura poesia, jogado em meio às graves preocupações do público? Oriente rima com quê?’ Ele responderá que não sabe, que foi uma idéia que se apoderou dele, e apoderou-se de forma ridícula, ao ver um pôr-do-sol.”


Les Orientales desenha um mundo árabe violento, terrível (e, ao mesmo tempo, em alguns poemas, feliz). Palavras como sang, bataille, terreur saltam do livro povoado por pachás, sultanas e derviches, em cenários como o Egito, a Turquia e sua capital, Istambul. A figura mítica dos djinns, de que o poeta fala de passagem no poema Clair de Lune, é o tema deste:


XXVIII - Os djinns
Paredes,
Cidade
E portos,
Hospício
De mortos,
Mar cinza:
A brisa
Lá dorme.

Na planície,
um ruído.
É a treva
que respira.
Ela clama
como alma
que uma flama
sempre segue.

A voz mais alta
Soa qual guizo
De anão que salta,
Corre a galope
Foge, se exalta
Depois, no ritmo,
Sobre uma onda
Se equilibra.

O ruído próximo.
O eco o reprisa.
É como o relógio
De um templo maldito
Ruído da turba
Que estrondeia e gira
E às vezes se anula
E às vezes se amplia.

Deus! A voz sepulcral
desses Djinns!... Que alarido!
Fujamos na espiral
Das escadas sombrias.
Já se apagam as luzes:
Eis que as sombras das sebes
Que circundam o muro
Sobem até o teto.

É o enxame dos Djinns que passa,
Turbilhona e assobia!
Árvores, façam que caiam,
Crepitem, pinus, em chamas.
Pesado e rápido bando
Voam no espaço vazio,
Lembrando uma nuvem lívida
Que leva ao lombo um relâmpago.

Perto demais! Melhor fechar
A sala, fingir que não vimos.
Que ruído, fora! Medonha
Horda de dragões e vampiros!
A viga do teto está solta,
Pinga como planta encharcada
E a velha porta enferrujada
Trepida a soltar-se dos gonzos.

Gritos do inferno! Voz que urra e que chora!
Horrível enxame, ao vento do norte
-- Sem dúvida, céus! -- cai em meu telhado,
Cede a parede sob a negra hoste
A casa grita e, inclinada, oscila,
Dir-se-ia que, do solo arrancada,
O vento a gira com seu turbilhão,
Como se erguesse uma folha do chão.

Profeta! se tua mão me salva
dos impuros demos das trevas,
prosternarei a testa calva
em teus sagrados incensários!
Faz com que estas portas fiéis
Matem seu sopro de centelhas,
E que em vão as unhas das asas
risquem estes negros vitrais!

Já passaram! Sua tropa
Se vai, e foge, e seus pés
Param de chutar a porta
Com multiplicados golpes.
O ar se enche do som
De correntes. Nas florestas
Os grandes carvalhos tremem,
Dobrados sob seu vôo.

De suas longes asas
Decresce o batimento,
Se perde nas planícies
Tão fraco que se crê
Ouvir um gafanhoto
Gritar com fraca voz,
Ou um som de granizo
Sobre o zinco do teto.


Sílabas estranhas
Chegam-nos ainda:
Assim como quando
Ao som do clarim
Os árabes cantam
Um canto tristonho,
A criança sonha
Um sonho sem fim.

Os Djinns funéreos,
Filhos do mal,
Dentro das trevas
Andam mais rápido
O enxame ronca
Assim, intenso,
Múrmura onda
Que não se vê.

O som vago
Que já dorme
É a vaga
Junto à orla
É o choro
Quase findo
De uma santa
Por quem morre.

Na dúvida
A noite
Escuto:
Já foi-se,
Já passa.
O espaço
Embaça
O som.

A métrica é pouco usual, talvez única: quinze oitavas, das quais a primeira tem versos de duas sílabas, a segunda de três – e a quantidade de versos cresce de estrofe em estrofe, até a oitava delas, quando começa a decrescer até voltar aos versos de duas sílabas. Ou seja: as estrofes têm versos de 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2 sílabas. Por que Hugo teria rejeitado as estrofes de nove sílabas?

Analisando a tradução
Não tem sentido traduzir Les djinns sem respeitar a métrica, já que ela, de certa forma, “é” o poema. Mas respeitá-la e manter, ao mesmo tempo, tanto o esquema de rimas como o conteúdo integral é impossível.


Quem traduz poesia tem de escolher entre privilegiar o significado ou a forma. Nesta tradução de Les djinns, procurei manter a métrica – que é a característica mais marcante do poema – e o significado dos versos. Mas não obedeci ao esquema de rimas ababcccb que Victor Hugo adotou.
Não conheço outra tradução para o português.


Trago aqui a primeira estrofe de uma versão para o inglês de John L. O'Sullivan, contemporâneo de Victor Hugo, que manteve o esquema de rimas em detrimento do significado:



Town, tower/ Shore, deep,/ Where lower/ Cliff's steep;/ Waves gray,/ Where play/ Winds gay,/All sleep[1]. Vê-se que O'Sullivan introduziu torres e rochedos inexistentes no original, adjetivou os ventos como alegres, destoando do tom sombrio do poema, e abandonou os “mortos”, que não aparecem na sua versão nem em hospícios, nem em asilos. Em compensação, foi fiel ao esquema de rimas.

O original (Murs, ville,/ Et port,/ Asile/ De mort,/ Mer grise/ Où brise/ La brise,/ Tout dort) seria, ao pé da letra: Muros, cidade/ e porto,/ hospício[2]/ de morto/ mar cinza,/ onde se quebra/ a brisa,/ tudo dorme[3].


Para a tradução deste poema, não encontrei solução que permitisse deixar “murs, ville” – muros, cidade – no mesmo verso, mantendo as duas sílabas do verso original. Em português, mesmo a evidente e compacta “muros, vila” já teria três sílabas. A saída foi optar por palavras com duas sílabas poéticas, deixando-as em versos diferentes: “paredes/ cidade”. Lembrando que mur, em francês, designa tanto muro quanto parede. Com essa opção, gastam-se dois versos para dizer o que Hugo disse em um, e em conseqüência algo se perde nos versos seguintes. No caso, o que deixei de lado foi a “quebra” da brisa.


Problemas semelhantes surgem, evidentemente, em cada estrofe de qualquer poema que se pretenda traduzir, e a cada dificuldade é preciso optar por manter ou perder significado, ritmo, sonoridade, métrica ou rima.


Gênios, demônios e djinns
Na mitologia da Grécia antiga, acreditava-se que a cada pessoa era designado um daimon para lhe servir de guardião por toda a vida. A palavra latina para esse mesmo ser mitológico – um semi-deus que presidiria ao nascimento de cada pessoa e a acompanharia em todas as ocasiões – era genius, o espírito tutelar que, acreditava-se, determinava a personalidade e o caráter de seu protegido. Genius deriva do verbo gignere[4], que significa conceber, originar, criar, dar vida, dar à luz.


Mas o latim emprestou do grego a palavra daimon, grafando-a daemon (dæmon), inicialmente com o significado de ‘espírito’ e, mais tarde de ‘mau espírito’.



Por outro lado, no início do século XV o idioma inglês tomou do latim o termo genius, dando-lhe o significado de ‘espírito protetor’. Quase 200 anos depois, em 1595, sir Philip Sidney, poeta inglês, usou a palavra para referir-se à vocação de uma pessoa: “A Poet, no industrie can make, if his owne genius bee not carried vnto it”. Numa tradução muito livre, “nada pode fazer de alguém um Poeta, a não ser seu próprio gênio”.


No século seguinte, a palavra estendeu-se dos poetas a outros artistas de diversas áreas.


Na Inglaterra do século XVIII, os Românticos passaram a usá-la com o significado de uma capacidade intelectual inata, voltada especialmente para atividades criativas. Nesse mesmo século, Antoine Galland traduziu para o francês o clássico da literatura oriental As Mil e Uma Noites (foi a primeira versão feita para o ocidente) em que aparece o termo árabe djinn com o significado de espírito ou demônio. Galland, que usa o plural djinniy, traduziu djinn para o francês, criando o então neologismo génie. Os ingleses adotaram essa grafia – sem acento, é claro – para designar uma figura mítica como o gênio da lâmpada de Aladim: genie (pronuncia-se em inglês justamente djiniy) A série de TV Jeannie é um Gênio brinca com esse vocábulo, num trocadilho com o nome próprio feminino que tem a mesma pronúncia.


Os árabes, no período pré-islâmico, davam grande valor aos poetas. Acreditavam que cada poeta é possuído por um djinn que lhe dita os versos, independente de sua vontade. Os poeta tinham nas tribos uma estatura social importante, e eram recompensados pelos poemas que ofereciam. Entre outros privilégios, não eram obrigados a pagar o dote de sua noiva, prerrogativa que não era concedida nem mesmo aos príncipes.


(Maomé, que resistiu o quanto pôde à voz que lhe sussurrava a ‘revelação’ do livro sagrado, talvez tenha sido um poeta que se acreditou profeta. Durante vinte anos ‘recebeu’ os versículos do que hoje compõe o Corão, acreditando que lhe eram sussurrados pelo anjo Gabriel, quando na verdade tratava-se provavelmente de um djinn em ação.)


Victor Hugo, que escreveu seus versos ‘dormindo’ – eles lhe vinham em sonhos, como acontece a tantos poetas – provavelmente sentia-se assombrado por djinns. A descrição que fez deles nesse poema, seres terríveis, mostra como é pouco confortável para o poeta o transe que produz o poema.


Bibliografia:
LURKER, Manfred. Diconário dos deuses e demônios. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega. São Paulo: Cultrix, 1995.
GRANT, Richard B. Sequence and theme in Victor Hugo's Les Orientales. PMLA, Vol. 94, No. 5 (Oct., 1979), pp. 894-908
KACIRK, Jeffrey. Forgotten english. Nova Iorque: Quill,1997.
WEBSTER’S Word histories. Springfield: Merriam Webster Inc., 1989.

Sites:
http://www.mundoislamico.com/mohammad.htm
Prefácio de Les Orientales: http://static.scribd.com/docs/8992gzt8s54ll.swf
Les Orientales - poema original isponível na íntegra em:
http://www.chez.com/lyres/Hugo/orientales/Hugo0rient1.htm
ou em
http://fr.wikisource.org/wiki/Les_Orientales
Íntegra da tradução de John L. O'Sullivan para o inglês:
http://www.johannes-eva.net/index.php?page=hugo_en

[1] Tradução: Cidade, torre,/ praia, profundeza,/ onde os mais baixos/ rochedos tornam-se íngremes,/ ondas cinzentas,/ onde brincam/ ventos alegres/ todos dormem.
[2] Asile, no século XIX, referia-se apenas a hospício (asile d'aliénés, asile de fous).
[3] “ Tout dort” significa “tudo dorme”. “All sleep”, como está na tradução de O’Sullivan, é “todos dormem”. as “todos dormem”, em francês, seria “tous dorment”. Em inglês, para manter esse significado original, seria preciso dizer “everything sleeps” – o que arruinaria a métrica. Em português, qualquer das duas formas (tudo ou todos) quebraria as duas sílabas do verso. Optei por “Lá dorme”, para resgatar o “Où” (onde) do original.
[4] gigno, gignere, genui, genitus

5 comentários:

Fernando Maia Jr. disse...

Um texto que com certeza engrandece nosso blog e não deveria passar sem comentários.

Atualmente tentei traduzir, por hobby, alguns poemas. Realmente é uma arte ingrata! :-)

Minha admiração àqueles que a isso se dedicam.

Betty Vidigal disse...

Fer, eu não me dedico a isso, propriamente...
Este me atraiu pela forma.

Tenho traduzido os sonetos de Shakespeare, mas me interessa mais comparar as diversas traduções deles pro português do q fazer as minhas......
bjs!

Allan Vidigal disse...

Olha que bacana que acabou de chegar no meu email:
"Estimados:
Deseo tomar contacto con el traductor de Les Djinns de Victor Hugo, ya que la versión que acabo de leer en el Blog do Escritor me resultó sumamente interesante..
Aguardo el dato y los saludos atentamente. Sonia.

Sonia Mabel Yebara
Directora
Escuela de Letras
Facultad de Humanidades y Artes
Universidad Nacional de Rosario"

Betty Vidigal disse...

Então, Allan... olha q legal! a gente pensa q ninguém lê artigo "sério"... mas para alguma coisa eles servem, né?

BJ!

Anônimo disse...

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